É normal — e até necessário — ter momentos de mais estresse ao longo da vida. Se um filho está doente ou o prazo para uma entrega relevante no trabalho está acabando, é importante estar em alerta para lidar com a situação e buscar soluções. Mas esse sistema precisa ser “desligado”, o que é mais difícil em alguns momentos do ciclo reprodutivo da mulher. Com isso, ela fica mais vulnerável a transtornos mentais como ansiedade e depressão.
A explicação é do psiquiatra Igor Emanuel, diretor da I Psi Clinic, clínica especializada em saúde mental nesse público. O impacto na saúde mental da mulher ocorre porque algumas delas têm tendência a não responder bem às flutuações de hormônios como estradiol e progesterona.
“São alguns hormônios que favorecem, sobretudo no período pré-menstrual, diante de alguma adversidade, que a mulher tenha esse aumento da prevalência”, afirma o médico. Essas mudanças também ocorrem durante o pós-parto e na perimenopausa, por exemplo. “O corpo e o cérebro [dela] respondem de forma muito reativa a essas variações”, diz.
Na quarta edição do especial jornalístico "Nenhuma a Menos", uma série de 10 reportagens — que integra o "Projeto Elas" —, o Diário do Nordeste discute atitudes, costumes, tradições, aspectos biológicos e comportamentos que impactam na saúde mental de meninas e mulheres, visando debater formas de buscar seu bem-estar, entendendo que essa é uma demanda coletiva, de toda a sociedade, e que atravessa questões que vão além de doenças, pois ultrapassam temas como saúde e envolvem educação, cultura, política e economia.
Um editorial publicado em 2015 na revista científica Journal of Psychiatry & Neuroscience (JPN) aponta que até a puberdade as taxas de depressão e ansiedade são semelhantes entre meninos e meninas. A partir daí, mulheres jovens estão em maior risco para esses transtornos mentais.
“Em idades superiores a 65 anos, tanto homens quanto mulheres mostram uma diminuição nas taxas de depressão, e a prevalência torna-se semelhante entre eles”, complementa o autor, Paul R. Albert, professor da Universidade de Ottawa e coeditor do periódico.
O texto discute esse predomínio de depressão em mulheres. Conforme o documento, em 2010, a prevalência anual global da doença foi de 5,5% em mulheres e 3,2% em homens — o que representa uma incidência 1,7 vezes maior entre elas. O texto ainda aponta que, na faixa etária 14 a 25 anos, o transtorno é mais do que duas vezes mais prevalente em mulheres jovens do que em homens.
O fato de o aumento da prevalência de depressão correlacionar-se com as mudanças hormonais em mulheres, particularmente durante a puberdade, antes da menstruação, após a gravidez e na perimenopausa, sugere que as flutuações hormonais femininas podem ser um gatilho para a depressão.
“Why is depression more prevalent in women?”
Saúde emocional e saúde física não devem ser vistas como duas coisas completamente separadas. A psicóloga obstétrica/perinatal e da parentalidade Milena Bomfim destaca a abordagem psico-neuro-endócrino-imunológica para apontar que todos esses sistemas estão conectados.
Ela explica que um grande estresse pode levar a uma “doença do corpo” e vice-versa. Dores incapacitantes causadas pela endometriose podem, a longo prazo, estar ligadas ao desenvolvimento de depressão, por exemplo. “Fazemos uma separação didática para entender, mas quanto mais equilíbrio esse corpo feminino tiver, melhor”, afirma.
“EU ENTENDIA QUE AQUILO ERA UMA DOENÇA”
As lembranças da primeira menstruação, para a professora Érica Fernandes Dias, 47, não são boas. Aos 11 anos, a pequena moradora de Cedro, município ao centro-sul do Ceará, não entendeu o que era aquele sangue. Ela não sabia que tinha “virado moça” e, de tão assustada, não falou para ninguém o que tinha acontecido. Nem para a própria mãe, de quem escondia as roupas sujas.
Depois da primeira menstruação, Érica não queria sair de casa ou ir para a escola. A mudança no comportamento era perceptível e as pessoas comentavam que ela tinha “amofinado”. Chegou a consultar um psiquiatra, mas de nada adiantou, pois também não falou para ele o que lhe ocorreu. “Para mim, era como se algo de errado estivesse acontecendo. […] Eu entendia que aquilo era uma doença, era tudo tão complexo, e eu não sabia o que fazer”, lembra.
O problema só foi resolvido quando ela desabafou com uma amiga, o assunto chegou à mãe da menina e, em seguida, à mãe de Érica. Do segundo mês em diante, com mais orientação, menstruar passou a ser menos traumático. Anos depois, mãe de uma menina, fez questão de que a experiência não se repetisse. “Desde que senti que ela tinha idade para compreender, falei sobre o processo. Para ela, foi tudo natural”, conta.
Mas esse não foi o único período complexo pelo qual ela passou e que teve impactos para a saúde mental. Na primeira gestação, cheia de altos e baixos devido a inseguranças e tensões vividas no relacionamento, ela também viveu uma situação que hoje identifica como violência obstétrica.
Ouvi tudo que não deveria ouvir de duas mulheres que estavam comigo na sala de parto. Enquanto eu vivia a espera do meu filho e atravessava a dor do parto normal, elas falavam que eu era fraca, que na hora de fazer eu não pensei [na dor do parto], que não iriam incomodar a médica, eu ia ter de ter meu filho ali com elas.
Em meio a um período tão delicado quanto o pós-parto, ainda tinha que lidar com problemas conjugais e financeiros, além de e violência doméstica, vivendo uma maternidade solitária. “Foram muitas questões. Minha rede de apoio sempre foi muito limitada. Vivemos em uma sociedade na qual a paternidade é muito seletiva e a maternidade é compulsória. Minha saúde mental ainda hoje é muito fragilizada”, diz.
Mesmo com todos os desafios, Érica celebra tudo o que já conquistou: se formou, é servidora pública, os filhos estão “encaminhados”. Ela encontra refúgio em meio à coleção de livros.
Manoel de Barros, bell hooks, Bartolomeu Campos de Queirós, Conceição Evaristo e Fernando Pessoa são autores que cita ao relatar o prazer pela leitura e pela escrita e espiar a própria estante. “Tem um sorriso meu perdido no tempo, uma alegria genuína minha que eu ainda quero resgatar. [...] Ainda tenho muitos sonhos”, revela.
TRANSTORNO DISFÓRICO PRÉ-MENSTRUAL
O período anterior à menstruação pode gerar sintomas físicos, comportamentais e emocionais, no que se chama popularmente de tensão pré-menstrual (TPM). Há casos, porém, em que as manifestações são mais graves, levando a sofrimento e/ou prejuízos nas interações sociais e no desempenho de funções no trabalho. É o transtorno disfórico pré-menstrual (TPDM).
Segundo informações do Manual MSD, esse transtorno pode começar a qualquer momento após a menarca — a primeira menstruação — e pode piorar com a aproximação da menopausa. Estima-se que ele ocorre em aproximadamente 3% a 8% das mulheres que estão menstruando.
Alguns sintomas apresentados por quem sofre com a doença são alterações de humor, ficando tristes e chorosas subitamente. Essas pessoas ficam irritáveis e se zangam com facilidade, mostram-se deprimidas, sem esperança e ansiosas e podem se sentir sobrecarregadas ou sem controle.
Assim como em outros tipos de depressão, pode haver perda de interesse em atividades, dificuldade de concentração, cansaço e falta de energia, compulsão por certos alimentos e dormir pouco ou muito.
CICLO GRAVÍDICO PUERPERAL
Ao citar o pós-parto como um momento de impacto para a saúde mental devido às mudanças hormonais, o psiquiatra Igor Emanuel pondera que há “alguma controvérsia”. Estudos apontam que as taxas de depressão e ansiedade tanto na gestação quanto no pós-parto não é tão diferente de outros períodos da vida da mulher, explica o médico. “Mas a gente sabe que é um período de muito gravidade.”
Existe algo hormonal, existem mulheres que, quando engravidam e não sabem que estão grávidas, deprimem “do nada”, sem gatilho. Então, essa mulher especificamente teria uma vulnerabilidade hormonal. Mas, de forma geral, ainda é um ponto um pouco em aberto.
Milena Bomfim também destaca as flutuações hormonais — além de aspectos sociais e culturais — como explicação para a maior suscetibilidade das mulheres a alterações emocionais.
Ela acrescenta que o ciclo gravídico-puerperal contempla aquelas que estão no processo para engravidar ou já na amamentação. “Algumas passam por tratamento de reprodução humana e têm um contato muito grande com a administração de hormônios, antes mesmo de gestar”, explica.
Nessa etapa, pode ocorrer o chamado baby blues, quando a mulher alterna momentos de irritação, tristeza e vontade de chorar com alegria e satisfação. Segundo informações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), os hormônios se estabilizam à medida que o organismo começa a produzir o leite materno e essa condição costuma desaparecer até o final da segunda semana de vida do bebê.
Já a depressão perinatal é um transtorno do humor que pode começar ainda na gestação ou nas primeiras seis semanas após o parto e persistir por um ano ou mais. Relativamente comum, a doença acomete entre 10% e 20% das mulheres, informa a SBP. Nesses casos, diferentemente do baby blues, a entidade alerta que é necessário tratamento médico imediato.
SAÚDE MENTAL NA MENOPAUSA
A transição da idade fértil para a menopausa também é um período em que a saúde mental pode ser afetada pelas mudanças hormonais, além dos aspectos socioculturais envolvidos no processo de envelhecimento. Ondas de calor ou fogachos, ansiedade, dores de cabeça, cansaço, dificuldade para dormir, palpitações, instabilidade emocional, estresse, problemas de memória, depressão, diminuição do desejo sexual estão entre os sintomas mais relatados pelas mulheres.
A enfermeira Eliany Nazaré Oliveira, professora do curso de Enfermagem da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), chama atenção para a prescrição de benzodiazepínicos nesse momento da vida. Essa classe de medicamentos inclui fármacos que atuam como tranquilizantes e sedativos — como Alprazolam, Clonazepam e Diazepam — e podem levar à dependência, em caso de uso prolongado.
Ela estudou o tema na dissertação de mestrado “Saúde mental e mulheres: sobrevivência, sofrimento e dependência química lícita” e alerta para a prescrição desse tipo de remédio quando a mulher entra na menopausa, sem o desmame necessário após o tratamento. Com isso, a mulher já chega na velhice mais vulnerável a transtornos mentais.
Quando sou dependente de um tipo de medicamento, posso desenvolver outros transtornos mentais. É o que chamamos de comorbidades psiquiátricas. Ou seja, tenho uma dependência de benzodiazepínicos, cada vez vou tomando mais e posso desenvolver, a partir daí, uma depressão maior, um transtorno de ansiedade, uma síndrome do pânico.
Igor Emanuel reforça a dificuldade de retirar essas medicações após anos de uso. “De fato, tem algumas complexidades, inclusive de impactos na memória. […] Quando falamos de depressão na perimenopausa, é superimportante olharmos com carinho a cognição, porque às vezes podemos estar diante de um quadro de Alzheimer que abre com um quadro depressivo”, afirma.
CUIDADOS NECESSÁRIOS
Em todos esses cenários, o psiquiatra destaca a importância de os transtornos mentais serem identificados e tratados precocemente. Para isso, é importante romper o preconceito com o acompanhamento psiquiátrico e o uso das medicações corretas. “Deixar a depressão e a ansiedade evoluírem com um quadro grave vai requerer intervenções mais agressivas”, alerta.
Isso também vale para uma mulher grávida que está passando por algum desses problemas. Não tratar a depressão durante a gravidez causa malefícios para a mãe e para o bebê, aumentando o risco de prematuridade e de baixo peso ao nascer, por exemplo.
No pós-parto, pode levar a dificuldade de lactação e de cuidar do bebê, além de alteração do neurodesenvolvimento da criança. “São momentos que precisam de muito cuidado, que têm muita repercussão negativa”, diz o médico.
É preciso ter atenção para identificar sinais de que as coisas não estão bem. Perder a vontade por fazer atividades que antes eram prazerosas e ter mais momentos de sofrimento ou choro do que de felicidade são alguns pontos de alerta. Não se pode acostumar com a dor, diz a psicóloga Milena Bomfim.
“Primeiro ponto: entendi que eu não estou funcionando bem, preciso sair disso. Buscar ajuda de uma rede de apoio, compartilhar com o parceiro, compartilhar com os pais, às vezes com algum amigo. Ou ela mesma fazer o movimento de procurar um profissional da área de saúde mental”, indica.
FONTE DIÁRIO DO NORDESTE