Fortaleza, Barra do Ceará, 2015. Gente reunida no karaokê do bairro.
O movimento é animado, brincadeira boa. Aguardam a próxima pessoa arriscar algum talento.
Então alguém pega o microfone e começa uma canção. Escolhe Whitney Houston, e capricha no gogó. O dono do negócio, todo entusiasmado, grava vídeo e publica nas redes sociais. O material viraliza. Tudo muda.
Em resumo, esta é a história de Makem na música. Aos 31 anos, ela agora é nacionalmente conhecida – conquistou os quatro jurados na primeira audição às cegas do The Voice Brasil, no último 15 de novembro. Até chegar a esse reconhecimento, porém, o percurso foi grande. As batalhas, maiores ainda. Mas a cearense sacudiu a poeira, e conta como conseguiu superar desafios a fim de deixar a vida cantar e ser cantada.
“É uma estrada recente. Antes de 2015, trabalhava em escritório, sindicato de Auto Escola, centro de recuperação de crédito, absolutamente nada a ver com música. Sempre foi uma paixão, mas eu não tinha a visão de que ela podia me sustentar”.
A virada de chave aconteceu exatamente naquele bendito karaokê da Barra. A performance a levou a programas de televisão, contato com gente grande, outras possibilidades. Era necessário se aperfeiçoar.
Ganhou aulas de canto e desenvolveu novos procedimentos. Até 2020, por exemplo, estreitou o contato com Marta Carvalho – professora do Conservatório de Música Alberto Nepomuceno por 27 anos. “A técnica vocal que tenho hoje devo a ela”, diz. Mas muito antes já havia flertado com esse universo de forma profissional ao ter aulas básicas no coral da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Eram idos de 2011. Semente.
Nessa mesma época, também se desvinculou da igreja evangélica – onde desde pequena cantava nos cultos. A mudança se deu para andar com o que hoje chama de “a galera do rock”, uma turma que se reunia em frente ao templo religioso, no Álvaro Weyne.
Com eles, Makem começou a se aprofundar no heavy, no black e no death metal. “Era também uma forma de escapar do conservadorismo da minha casa, onde só se podia escutar música gospel, ‘as coisas de Deus’; as do mundo, não tinham valor”.
Assim, foi de Black Sabbath a Led Zeppelin, guitarra truando e voz estridente. Relacionamentos amorosos depois, também deu de cara – melhor, de ouvidos – com Gal Costa, Elis Regina e demais medalhões da MPB. Apaixonou-se. E viu que o pai, ao escutar Tim Maia em casa, já havia começado o caminho. Makem tratou de continuar. Para começar definitivamente.
Tigresa
Foi como escolheu “Tigresa”, de Caetano Veloso, para se apresentar no The Voice. Jurados cantaram em uníssono, plateia acompanhou. Uma beleza. A decisão pela faixa, claro, não foi arbitrária – nem a vontade de estar no programa. Esta foi a quarta tentativa da cearense, e deu mais certo do que nunca. “Foi algo que pavimentei”.
Quanto à música do filho de dona Canô, alinha-se ao processo de descoberta de Makem. Ela sempre possuiu atração muito forte pelo feminino – deusas antigas, bruxas, guerreiras, e, no caso do Brasil, pela nossa Iara, nossa Gabriela, Anita Garibaldi. Interpretar versos como “Uma mulher, uma beleza que me aconteceu” foi forma de fazer as pazes com esse feminino dentro de si. Aceitá-lo e abraçá-lo do modo mais completo.
“E escolhi porque, sem dúvida, é uma das músicas mais lindas já escritas, sobre um tempo em que começa a ascensão do movimento feminista. Além disso, fui construída por mulheres. Minha mãe, tias, duas irmãs, basicamente minha vida inteira foi rodeada de mulheres”. Entram nessa conta o povo periférico, de raízes simples, resistentes e inspiradoras. A artista nasceu e cresceu no Álvaro Weyne, em Fortaleza, e é a ele que presta tributo.
“Esse bairro me moldou, me fez a pessoa que sou hoje. Conheço e ando por toda essa parte da Fortaleza periférica – abrangendo Carlito Pamplona, Barra do Ceará, Pirambu, Goiabeiras – conversando com toda essa gente. O meu grande caso de amor com o Álvaro Weyne está nas histórias que vivi nele. Acho uma bênção ter nascido num lugar assim, de ter conhecido tantas pessoas que carregam vidas, crenças e traços tão diferentes”.
Foi como desenvolveu também a consciência crítica, vetor de revolução. Naquele território de potência artística e resistência, reconhece o Cuca Barra e a Casa de Vovó Dedé como instrumentos de luta. Da mesma forma que cada movimento cultural gestado nas esquinas, embaixo de caixas d’água, nas salas de casa e nos quintais. Tudo respira diversidade.
Investir na brasilidade
Nos próximos passos do The Voice Brasil, Makem quer investir na brasilidade – pura, de pensamento e movimento livres, de liberação do eu, da sexualidade, da pulsão interna. De real expressão da liberdade. “Estou no momento de focar 100% na competição. Meu maior desejo é dar orgulho aos meus conterrâneos, para todo mundo que, de certa forma, está contando comigo, torcendo por mim”.
A força se agiganta quando recebe mensagens de apoio, molas propulsoras para a voz e o sorriso. Depois de preconceitos e bullyings sofridos ao longo do começo da jornada, agora tudo ganha nova textura. “São coisas que se convertem em força”.
Também em realidade e mais sonhos. A cantora sente que o instante-agora é o momento de começar do zero de novo, recomeçar tudo. Quer ocupar os grandes palcos e festivais do mundo levando a herança cearense. Cantar os dilemas, as questões sociais, a tristeza e a alegria. Manifestar o amor.
“Levar a representatividade do Ceará para onde quer que eu vá. E afirmar esse legado que já vem de Amelinha, Belchior, Fagner, Ednardo, de que nosso Estado produz grandes artistas. Não que eu esteja me colocando nesse patamar, mas como obra em construção para chegar lá. Quero gritar para o mundo, ‘O Ceará tem poder, tem excelência’”.
Nesta terça-feira (29), ela sai de Fortaleza para, novamente, gravar a participação no The Voice Brasil. Leva consigo a certeza de que tudo é possível. Talvez recorde daquele instante primeiro, Whitney Houston no karaokê. Imaginou onde chegaria?
“É questão de acreditar em si – não importa de onde você vem, qual a sua origem, quem você é, o que você faz, o que você escolheu na vida. Muitas vezes as pessoas podem lhe julgar mal, falar mal dos seus trejeitos, da sua voz (que a sua voz é anormal, feminina demais). Mas, quando você começa o processo de auto-aceitação, ele tem efeitos incríveis. Isso gera uma admiração dos outros, sabe?”. Mirar no possível.