Adriana Calcanhotto estava com passagem marcada para
voltar a Portugal, onde dá aulas na Universidade de Coimbra - da qual
também é embaixadora -, quando a pandemia do novo coronavírus paralisou o
mundo. Com a viagem adiada, desencaixotou os livros, e iniciou sua
rotina de isolamento em sua casa, no Rio. Para alguns artistas, a
quarentena tem sido encarada como um período pouco propício para a
criação. Para outros, o efeito é contrário: o misto de sentimentos
desencadeados por essa fase tem inspirado obras urgentes. E foi assim,
no afã de criar, que Adriana Calcanhotto elaborou seu novo disco, Só,
composto, produzido, gravado e mixado entre 27 de março e 8 de maio, e
que será lançado nesta sexta, 29, nas plataformas de streaming.
Com o projeto, a compositora vai reverter os direitos
autorais de cada faixa em prol de diferentes instituições - como Redes
da Maré, Ação Cidadania, Funk Solidário, entre outras - e também de sua
equipe de técnicos, que está sem trabalhar desde o começo da pandemia,
por conta do cancelamento de shows.
Só é o seu disco da quarentena. Essa rapidez na
composição e na gravação de um álbum foi um processo inédito na
trajetória da cantora e compositora, que habitualmente se debruça por um
longo tempo sobre um novo trabalho. Reflexo do momento atípico que o
Brasil (e o mundo) está vivendo. "Eu acordava e fazia as canções com
essa disposição: 'preciso fazer alguma coisa'. Só que descer do
quartinho e me dispor a fazer uma canção não quer dizer que vá
acontecer. Isso que eu achei incrível: todo dia eu acordava e fazia uma
canção nova", conta Adriana, em entrevista ao Estadão,
por telefone, do Rio. "Então, foi uma urgência que se deu. Todo o
processo de depuração, aquela coisa que eu gosto de camadas de tempo,
nada disso cabe numa situação como esta."
Coprodutora do disco ao lado de Arthur Nogueira, Adriana
compôs praticamente uma canção por dia. Dessa rotina intensa, saíram
nove faixas, que entraram no disco na ordem em que foram feitas. Na
realidade, foram dez, mas uma delas foi enviada para Maria Bethânia.
"Fiz a partir de uma expressão que ela usou, eu nunca tinha ouvido
aquilo. Bethânia gostou, ficou com ela e, de fato, é bem mais da
Bethânia do que do álbum da quarentena." Essa coleção de músicas, conta a
compositora, não surgiu da intenção de dar corpo a um projeto. Essa
proposta veio depois.
Ninguém na Rua, a primeiríssima música a ser
composta (e que abre o álbum), nasceu de sua batida do funk no violão.
"O que já existia dela - talvez explique um pouco o começo - é uma
batida do funk. Toquei no violão quando gravei Claudinho e Bochecha, era
um jeito que eu fazia a batida, mas venho experimentando outros jeitos,
no violão, de tocar funk. Tinha a batida só e aí a canção veio." O
título parece carregar um pouco daquela imagem da quarentena na Europa,
das ruas vazias, que circulou pelas redes e pelos noticiários.
E é por meio das notícias que Adriana recebe as
informações do mundo de fora, já que ela está literalmente isolada no
meio da mata. "Moro na Floresta da Tijuca, então, não ouço
manifestações, não ouço buzinaço, não ouço panelaço, só tenho contato
com o mundo pelas notícias." Nessa esteira, vieram outras canções, como O Que Temos e Tive Notícias Suas. O Que Temos carrega
outra imagem da quarentena, a do dia a dia visto pelas janelas, pelas
sacadas. "Deixa eu te espiar/ Finge que não vê/ O que temos são
janelas", diz no começo da canção - que se encerra ao som de um
panelaço, que virou trilha sonora do isolamento em protestos contra
Bolsonaro. "A gente não pode fazer manifestações na rua, mas, se temos
janelas e temos panelas, não é isso que vai nos impedir. É um som muito
forte, e é uma coisa documental", afirma a compositora.
Lembrando da Estrada carrega a saudade de
Adriana de sair em turnês com sua equipe, a quem reserva os direitos
autorais da música. "Tenho preocupação direta com minha equipe, porque
as pessoas trabalham, têm filhos, compromissos. Pensei em gravar uma
faixa e reverter para minha equipe." Partiu daí a ideia de ajudar
instituições por meio das demais faixas. "O pano de fundo (do disco) é a
pandemia, o pandemônio, essa insegurança que temos todos quanto ao
futuro, essa quantidade de mortes."
E como a compositora imagina que será a volta à vida
pós-pandemia, "se houver mundo", como ela diz? "Vejo muito as pessoas
falarem 'quando voltar', não vai voltar, já passou e vamos pra frente.
Às vezes, acho que as pessoas que vão se conscientizar, a coisa da
generosidade, da solidariedade, que tudo isso avance, tome conta do
mundo, mas, ao mesmo tempo, outros dias, vejo que tem corrupção em
hospitais de campanha. Às vezes, não estou muito esperançosa", observa.
"Acho que algumas pessoas vão fazer disso uma coisa boa; outras vão
tentar ficar voltando para o que era, uma coisa que não é mais possível;
e outras seguirão péssimas em quaisquer circunstâncias, sendo
corruptas, desumanas, irresponsáveis."