A era Vargas começa e termina com um atentado. Derrotados nas urnas
por Júlio Prestes nas eleições de 1930, apoiadores de Getúlio beberam
até a última gota o sangue de João Pessoa, aliado assassinado por outras
querelas na Paraíba, para impulsionar o levante durante a comoção e
tomar o poder à força.
O “perigo comunista” fez o governo que se iniciou provisório a criar
as bases do Estado Novo, uma ditadura que durou de 1937 a 1945. Ele
voltaria ao poder nos anos 1950, mas o atentado promovido por seu
segurança contra Carlos Lacerda, em 1954, na rua Tonelero, mudou, de
novo, o curso das coisas.
A história da violência política no Brasil não começou a ser contada
agora, mas ela serve como referência para entender a bifurcação que se
abre agora com o atentado contra Jair Bolsonaro em Juiz de Fora.
No primeiro momento, seus adversários optaram pela civilidade.
Baixaram as armas, manifestaram repúdio ao ato e solidariedade ao
opositor, até mesmo o candidato do partido que, dias atrás, o deputado
prometeu metralhar em campanha no Acre.
O mesmo fizeram as autoridades de todos os Poderes, do Legislativo ao
Judiciário, passando por Michel Temer: em momento raro no contexto
político, todos pareciam convergir no repúdio à violência como ato
político.
A exceção foi Dilma Rousseff, ainda presa na lei da física da ação e
reação, como fizera tempos atrás Geraldo Alckmin, candidato tucano à
Presidência, ao comentar o atentado a tiros contra a caravana de Lula no
Paraná. Dizer que uma facada ou um tiro é plantar o que se colhe revela
mais sobre o candidato a estadista do que ao ato em si.
Em termos gerais, no entanto, e por incrível que pareça, o atentado,
justamente condenado e lamentado publicamente por todos os candidatos,
serviu como distensão.
Ciro Gomes (PDT) chamou o episódio de “barbárie” e exigiu que as
autoridades identifiquem e punam o ou os responsáveis. Alckmin, desta
vez, lembrou que política se faz com diálogo e convencimento, jamais com
ódio. Fernando Haddad (PT) desejou o pronto restabelecimento do
adversário. Marina Silva (Rede) classificou a ação como um duplo
atentado: “contra a sua integridade física e contra a democracia”.
Por alguns momentos até parecia que estávamos em um país de
lideranças civilizadas (e, dando margem ao otimismo, as primeiras
manifestações podem servir, de fato, como um chamado à civilidade), mas
há uma bomba-relógio instalada no peito do processo eleitoral e ela
precisa ser urgentemente tirada do palanque.
O ambiente político está há muito contaminado pelos humores de quem
tenta ganhar a disputa a qualquer custo, com base na troca de sopapos em
público e na proposta de eliminação de adversários. Por falar nisso,
quem matou Marielle Franco?
O caso da vereadora assassinada no Rio, acompanhada do silêncio de
quem evitou se manifestar para não “polemizar”, nos lembra que
impunidade e irresponsabilidade caminham juntas nesse campo minado. Esse
ambiente tem como cenário as ameaças de intervenções, muros de
residências pixadas quando decisões jurídicas desagradam vontades
individuais, ameaças de agressão, correntes de notícias falsas e uma
extensa narrativa de criminalização política em tempos de crise
econômica.
“Políticos inúteis”, dizia a placa postada no Facebook sabe de quem? Do homem apontado pela polícia como responsável pela ação.
Adelio Bispo de Oliveira, de 40 anos, parece encarnar as
desorientações do próprio tempo. Foi filiado ao PSOL, mas exigia o fim
do Estado Laico e atacava homossexuais, duas posições completamente
opostas à da legenda de esquerda; parecia simpático a Nicolas Maduro e
denunciava a direita maçônica (oi?), mas frequentou a mesma escola de
tiros dos filhos de Bolsonaro.
Em outras palavras: era o comentarista de portal, paranoico e cheio
de raiva, que decidiu cruzar a linha entre o real e o imaginário para
eliminar um opositor por discordar de suas ideias.
“Fascismo não se combate com flores”, escreveram alguns ao longo do
dia em suas redes, num argumento muito parecido com o do próprio
Bolsonaro, para quem os problemas do país só se combate com
intransigência, ainda que essa intransigência elimine suspeitos e não
apenas criminosos.
As contradições encarnadas por Bolsonaro e suas ideias confusas para
“salvar” o país que parece não compreender deveria ter na arena política
o campo adequado para serem discutidas e rebatidas. Mas esse campo, é
óbvio dizer, precisa ter na garantia da integridade de seus
participantes um pilar central.
Fora do campo das ideias, a facada deu ao deputado e sua equipe duas oportunidades que se anulam.
A primeira é a possibilidade de fazer coro ao flerte de civilidade
ensaiada pelos próprios adversários. É um portão aberto para que sejam
revistos os discursos de apologia à violência e eliminação de
adversários não como uma epifania que une rivais quando têm a vida em
risco e veem a luz, mas como estratégia política de quem antevê as
consequências do atentado como uma profusão de revides.
A outra opção é a guerra, declarada inclusive pelo chefe de seu
partido. É o caminho para transformar de vez campanha política em risco
de vida.
A essa altura, vencer a eleição
já não deveria ser a preocupação central de quem está na disputa. É o
dia seguinte. E ninguém pode prever o que será desse país se o atentado
se tornar um pretexto para mais promover mais golpes, mais sangue e mais
ódio.