Tomou forma, no Brasil, uma estranha vocação autoritária. Ou melhor:
foi retomada. Ela circula por aqui desde que os primeiros portugueses
aportaram, mas perde a vergonha de se manifestar com todas as letras de
tempos em tempos.
Desolados com o colapso do sistema político, passamos a aceitar
ideias que imaginávamos enterradas pela História como parte de uma
solução ilusória. Como meninos levados, começamos a defender cartilhas e
palmatórias que ensinem a nos comportar e supostamente resgatar valores
que imaginávamos fartos no passado. Começa com uma mobilização aqui, um
cartaz levantado ali, um textão de Facebook acolá.
Quando percebemos estão nas tribunas. Nas páginas dos jornais. “É
preciso retomar a ordem”. “Não há outra opção se não a força”. “É
preciso ter garantias de que vamos agir sem sermos importunados por
Comissões da Verdade no futuro”. “Naquele tempo vagabundo não se
assanhava”.
A arapuca é, então, armada. Enfraquecido e sem qualquer ideia da
complexidade do país que se meteu a governar, o presidente acuado pelo
Judiciário resolve terceirizar a própria gestão ensaiando uma aliança
com as forças capazes de debelar a violência e restabelecer a ordem. A
antiga capital passa a ser o “laboratório” de um futuro discurso
político.
Quem sabe cola? Quem sabe esses últimos nove meses se transformem em
mais quatro anos? Quem sabe conseguimos, assim, escapar da alçada de
qualquer juiz de primeiro grau?
A medida tem apelo popular. Ninguém se importa com a dureza das
medidas. Foram elas, afinal, que nos salvaram da barbárie no passado. A
ditadura evitou, inclusive, que o Brasil se tornasse uma…ditadura
cubana.
O assassinato de dissidentes e fugitivos evitou que tivéssemos, hoje
em dia, as nossas próprias Farc, as famigeradas forças armadas
revolucionárias colombianas.
O medo do exemplo estrangeiro justifica a nossa opção pela força bruta. É o medo que nos guia, é ele que nos organiza.
Por medo, pedimos e aceitamos intervenções, discursos em defesa de
mais armamento, mais restrições, mais controles, mais palmadas em
“vagabundos”, como foram descritos por um vereador de São Paulo os
professores massacrados em um protesto contra o prefeito da cidade.
Tudo pela ordem, mas onde ela está? Onde ela um dia esteve?
Tudo o que não nos faltou, desde a nossa formação como país, foi
porrada. Ainda assim, tudo o que sabemos pedir agora é porrada. Quem
sabe reforçando a dose do remédio que jamais funcionou podemos salvar o
paciente à beira da morte?
O medo cega, e faz com que esqueçamos que o chefe do teatro é também
companheiro de partido e aventuras do ex-governador, do ex-presidente da
Câmara e do ex-presidente da Assembleia presos por corrupção. Isso sem
contar os colegas apanhados com milhões no apartamento ou em malas
recheadas por frigoríficos. É ele quem promete tirar o Rio de Janeiro
das mãos dos bandidos.
Ficamos mais seguros assim, e assim evitamos o pior. Não fosse o uso
da força, o Brasil teria hoje, a sua própria milícia, mancomunada com as
autoridades e controladora de serviços e distribuição de drogas em
comunidades onde não existe sequer plantação. Já pensou?
Seriamos, então, um país onde o crime não se constrange em atacar autoridades, juízes, jornalistas e vereadores.
Para quem não percebeu, esse país já existe.
Sob intervenção, jurou o presidente, o estado da lei e da ordem seria
restabelecido. Neste estado, não é possível sequer imaginar que alguém
seria capaz de acompanhar o carro da vereadora responsável por apurar e
denunciar abusos de autoridades, disparar nove tiros e seguir circulando
em pleno centro da antiga capital. Em vez disso, os assassinos da
vereadora Marielle Franco, mulher, negra, engajada e periférica, não
estavam nem um pouco constrangidos com o “cerco à violência” prometido
pelo presidente.
A vereadora era dura crítica dos abusos da polícia. “Quantos mais vão
precisar morrer para que essa guerra acabe?”, escreveu ela, em seu
Twitter, antes de se tornar mais uma vítima da guerra que tentava
denunciar.
O Brasil, vale lembrar, é o país das Américas que mais mata
defensores de direitos humanos, do meio ambiente e do direito à terra –
280 pessoas só em 2016.
Nesse país onde o medo sempre
justificou a aplicação da força e das chamadas “medidas duras”, o Rio se
tornou de fato um grande laboratório. Dentro dele, trocamos a liberdade
pela sensação de segurança. Seguimos sem liberdade. E, como mostra a
nova execução, nem um pouco mais seguros.