Tim Maia
experimentou uma inédita sensação de paternidade na primeira gestação
de Geisa Gomes da Silva, grande amor de sua vida. No princípio dos anos
70, os dois mantinham um namoro cheio de idas e vindas. Numa das
separações, Geisa engravidou de outro homem. Com ciúme doentio, o cantor
contratou um detetive para ir atrás dela. Assim que soube que ela
estava solteira de novo, mas esperando um filho, mandou um táxi levar
Geisa do interior fluminense à casa dele, no Rio de Janeiro. Fazia
questão de retomar o romance e cuidar do bebê.
Em 11 de março de 1974, enquanto realizava um show em São
Paulo, o cantor recebeu uma ligação da mulher, que informava estar em
trabalho de parto. Ele largou tudo, pegou um avião e chegou ao hospital
em Botafogo trazendo sua banda a tiracolo. Fez um pedido ao obstetra:
seria possível realizar uma apresentação no hospital assim que o bebê
nascesse? O médico negou o estranho desejo — até porque já permitira a
entrada de uísque e salgadinhos.
“Foi uma festa”, afirma Geisa, 45 anos
após o nascimento de seu primogênito, Márcio Leonardo Gomes Maia da
Silva, conhecido como Leo Maia. Dez meses depois, no mesmo hospital,
nasceria Carmelo Maia, filho dela e o único herdeiro de sangue de Tim
Maia.
Morto em 1998, aos 55 anos, o pai do soul brasileiro não viveu para
ver um espetáculo triste: Leo e Carmelo travam hoje uma guerra feroz por
seu espólio. Carmelo, o filho biológico, não aceita dividir a herança
paterna com Leo, o enteado. No papel e na lei, realmente, Carmelo é o
único herdeiro legítimo do cantor. Apesar de ter sido criado como filho
por Tim, Leo não possui registro oficial da adoção. Geisa, por falta de
coragem, nunca teria conversado abertamente sobre a questão da
paternidade com o cantor — cujo desprezo por assuntos burocráticos era
notório. Mais de vinte anos depois, Carmelo usa isso contra Leo. A
distância, a mãe assiste à rinha com comiseração. “Vejo essa briga com
muita tristeza, porque eu amo os dois incondicionalmente”, diz.
Em 14 de agosto, Carmelo entrou com uma ação indenizatória contra Leo
com o objetivo de “resguardar o patrimônio intelectual de Tim Maia
contra o aproveitamento parasitário” do irmão. O processo, ao qual VEJA
teve acesso com exclusividade, pede que Leo se abstenha de executar as
músicas e usar o nome do pai no projeto Tim Maia for Kids, no qual entoa
hits do cantor para crianças. Carmelo exige que Leo tire do ar a página
do show, com 40 000 seguidores no Instagram. E requer multa de 100 000
reais a cada vez que a proibição for descumprida. Em decisão liminar, o
juiz Théo Assuar Gragnano, da 12ª Vara Cível, deferiu a ação
parcialmente. Leo teve de remover a página da internet e não pôde mais
realizar o espetáculo.
O juiz, porém, autorizou Leo a continuar cantando músicas de Tim
Maia, desde que não explore o nome e a imagem do artista — o que livrou
de veto um show-tributo que ele faz ao lado de outros filhos de artistas
mortos. Mas, na sexta-feira 6, Carmelo voltou à carga. Em novo pedido à
Justiça, ele solicita que qualquer uso do nome e das músicas de Maia
seja vedado ao irmão. “Não entendo por que o Carmelo está fazendo isso
com o Leo”, diz a mãe. “Deixa o menino trabalhar.”
Imbróglios judiciais andam junto com a família Maia desde sempre.
Quando o cantor morreu, os parentes herdaram mais de 500 processos que
envolviam seu nome — na maioria, ele aparece como réu em ações de
músicos que pediam direitos trabalhistas e compositores que
reivindicavam direitos autorais. Maia deixou 3 milhões de reais em
dívidas, mas também cinco imóveis no Rio de Janeiro — uma casa na Lagoa
Rodrigo de Freitas, outra no Recreio dos Bandeirantes, dois apartamentos
na Praia da Barra e uma cobertura na Tijuca.
Além dos bens materiais, está em jogo o controle sobre o repertório
do artista e o uso do seu nome em projetos variados. Somente um musical
de 2011 em homenagem a ele levou mais de 400 000 pessoas aos teatros. No
Spotify o artista contabiliza 1,5 milhão de ouvintes mensais. Goste-se
ou não da sua obra, Tim Maia foi o arquiteto da soul music brasileira (confira o quadro)
e conquistou com justiça um lugar no panteão dos grandes artistas do
país. No fim da vida, porém, tornou-se a figura errática que cambaleava
no palco, reclamava sem parar da equalização do som (“Mais retorno!”) e
cancelava um show atrás do outro.
Tão logo o brigão saiu de cena, Carmelo assumiu seu lugar como
causador de barulho. Ele se envolveu numa pendenga na Justiça com
Adriana, ex-companheira do pai, em torno dos direitos da gravadora e da
editora Seroma, de propriedade do artista. Carmelo saiu-se vencedor e,
desde então, uma de suas missões consiste em apagar todo resquício de
Adriana na vida do genitor. Na biografia Vale Tudo, de Nelson
Motta, ela é identificada apenas como “secretária”. No musical de 2011 —
cujos ensaios, aliás, Carmelo monitorou de perto —, Adriana virou ponta
de luxo. Em algumas sessões, Izabella Bicalho, que vivia a última
mulher do cantor, não se continha e soltava um “meu amor” abraçada ao
ator Tiago Abravanel, que encarnava o protagonista.
O novo processo mostra que a briga é expressão de um rancor familiar
fermentado há décadas. Tudo começou em 2000. Segundo Leo, nessa época,
Carmelo entrou com uma ação de despejo para expulsá-lo da casa do pai no
Recreio. “Eu não tinha onde ficar, tive de morar com minha namorada”,
diz Leo. “Eu não o tirei de lá”, rebate Carmelo. Mas Geisa desmente o
filho mais novo: “Leo não pôde entrar nem para pegar suas roupas”. Leo
nutre outra mágoa de Carmelo: o irmão teria tentado impedi-lo de cantar
músicas de Maia no programa de Raul Gil, em 2008. Segundo ele, Carmelo
teria ameaçado o próprio apresentador com um processo se isso ocorresse.
Raul Gil Junior, o Raulzinho, filho e diretor de Gil, nega: “Leo é
nosso amigo, pode cantar o que quiser”.
Pessoas que conhecem a família de perto dizem que Carmelo ressente-se
de ter sido criado pela avó e por uma tia. “Não sinto falta de meus
pais, porque nunca os tive. Fiz trinta anos de terapia por causa disso”,
diz. Sua raiva explodiu quando Leo obteve o direito de pôr o sobrenome
Maia na certidão de nascimento. “O Tim Maia não é pai dele”, diz
Carmelo. “Não nos falamos há vinte anos.” Completa Carmelo: “Família é
bom só em porta-retratos”.
É com retratos, por sinal, que Leo tenta provar que realmente era
tido como filho pelo cantor. Seu trunfo é a foto da contracapa de um
álbum de 1976 em que surge no colo de Maia — e no qual o soulman canta
uma música para os dois filhos. Outras imagens de família mostram que os
irmãos não só conviveram juntos por anos como também tinham uma boa
relação — não para sempre, como se vê. “Carmelo foi minha sombra por
mais de duas décadas. Ele sempre tentou me destruir por eu ter herdado o
dom de cantar do meu pai. É inveja”, diz Leo. “Mas juro que, se o visse
na minha frente agora, eu o perdoaria.” E arremata com um verso do pai.
“Não quero dinheiro”, jura. Considerando-se a batalha em curso, a frase
soa como uma ironia digna das melhores tiradas de Tim Maia.
Com reportagem de Sérgio Martins