Ter acesso a água potável nas torneiras e uma coleta de esgoto
adequada, que mantenha as condições mínimas de higiene de casa, pode ser
comum a moradores de zonas centrais de Fortaleza e da Região
Metropolitana (RMF) - mas para muitas regiões periféricas e do Interior
do Ceará, a rotina é conviver com a falta. A distante universalização do
acesso ao saneamento básico nesses locais, aliás, pode estar posta em
xeque pela Medida Provisória nº 844, que visa alterar o marco legal do
assunto no País - o que, segundo especialistas, pode elevar os preços
das tarifas no Estado do Ceará.
Na manhã de ontem, representantes de entidades ligadas ao setor,
sindicatos e agências reguladoras se reuniram para discutir os pontos
positivos e negativos da proposta, publicada no Diário Oficial da União
em 9 de julho deste ano.
De acordo com o texto, a MP tem "o objetivo de garantir maior segurança
jurídica aos investimentos no setor de saneamento básico e aperfeiçoar a
legislação de gestão dos recursos hídricos e a de saneamento básico,
assim como a interação entre as políticas públicas dessas duas áreas". A
repercussão na realidade, porém, segundo analisa o presidente da
Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes/CE) e
professor de Engenharia Ambiental e Sanitária do Instituto Federal do
Ceará (IFCE), Humberto de Carvalho Júnior, poderá ser diferente e
prejudicar o Interior.
"É um processo de privatização do setor de saneamento básico, mais uma
facada na população mais carente. Hoje temos a tarifa social para os
mais pobres, e essa MP vai fazer com que os preços disparem, todos vamos
pagar mais", prevê, ressaltando ainda que a medida deve por fim ao
chamado "subsídio cruzado", por meio do qual "a Cagece consegue botar
água e esgoto em cidades pequenas e na periferia".
"As companhias de água e esgoto do País rateiam (dividem
proporcionalmente) os custos para manter o sistema funcionando. Em
municípios pequenos, como Banabuiú, por exemplo, o custeio é tão elevado
que os usuários não conseguem pagar a conta, e a Capital e os
municípios maiores compensam. O fim do subsídio obriga que as companhias
mantenham o sistema nessas cidades sem lucratividade, e isso faz com
que elas não consigam bancar", explica.
As consequências da falta de água tratada e de esgotamento, como
ressalta Júnior, incidem principalmente sobre a saúde pública. "O grande
problema é a questão social. Não tem nenhum benefício pra população."
No Ceará, a cobertura de coleta e tratamento de esgoto ainda engatinha
para chegar a todos os locais: de acordo com a Companhia de Água e
Esgoto do Estado (Cagece), somente 41,7% dos 151 municípios atendidos
pela empresa possuem acesso à rede, número que chega a 62% em Fortaleza.
Em 2017, os números eram, respectivamente, 40,98% e 58,53%, mostrando
um avanço a passos lentos.
Desafios
Para o presidente da Associação Brasileira de Agências de Regulação
(ABAR), Fernando Franco, "o Brasil tem muito o que evoluir" e "é
necessário, sim, mudanças no setor de saneamento básico, resolver os
déficits" - mas não é possível estabelecer os mesmos parâmetros para
todo o País. "As circunstâncias do Nordeste são muito diferentes do
Sudeste, por exemplo. O fim dos subsídios cruzados pode funcionar lá,
mas achar que vai dar certo aqui é uma loucura. O Ceará e o Nordeste
nunca vão universalizar o saneamento assim", alerta, defendendo, porém, o
aumento da tarifa. "A tarifa precisa ser revista. A água ainda é muito
barata aqui. Para quem não tem condição, mantém-se a tarifa social. Mas
que tem deve pagar".
No Ceará, segundo a Cagece, cerca de 232 mil clientes pagaram a tarifa
de contingência na conta de água, de janeiro a junho deste ano -
totalizando R$ 51 milhões de arrecadação. Desse total, "aproximadamente
R$ 22 milhões foram destinados a tributos, restando R$ 29 milhões
utilizados exclusivamente em ações de convivência com a seca". A Cagece
declara que "o valor arrecadado pela tarifa é investido em medidas
emergenciais para evitar colapso no abastecimento na Região
Metropolitana e em obras de segurança hídrica", como ações de combate às
fraudes de água na rede, retirada de vazamentos e melhorias nos
sistemas de abastecimento. No último mês de junho, informa a companhia,
"o volume de água consumido por ligação foi de 10,6 metros cúbicos".