segunda-feira, 1 de maio de 2017

O bardo cearense se despede

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Nas redes sociais, em grupos de mensagens, em mesas de bar. 

O lamento era um só, uníssono: a enorme perda que a morte de Belchior representa para a música popular brasileira. Ainda que tenha "sumido" dos holofotes e, até onde se sabe, parado de produzir - um afastamento que incluiu amigos próximos e família -, o mistério sobre por onde andava e o que fazia o "rapaz latino-americano" deixava uma nesga de esperança de que ele voltasse aos palcos ou aos estúdios.

Com a morte confirmada do cantor, porém, cessam as esperanças de vê-lo novamente. Belchior faleceu na manhã deste domingo (30), na cidade de Santa Cruz (RS), onde morava com a companheira, Edna Assunção de Araújo (Edna Prometheu), vítima de uma dissecção da aorta - rasgo da parede da principal artéria do corpo humano, causando grande perda de sangue. Segundo o delegado Luciano Menezes, responsável pela investigação, Belchior morreu durante o sono, ouvindo música clássica, no sofá da sala. Segundo Prometheu, que encontrou o corpo pela manhã, ele não tinha problemas de saúde nem tomava medicação.

O corpo do cantor está previsto para chegar hoje (1) a Fortaleza às 5h30. Até o fechamento desta edição, a informação da Secretaria de Cultura do Estado é que ele será levado a Sobral para ser velado no Theatro São João, de 7h às 10h, e, de lá, seria trazido novamente para Fortaleza para outro velório, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC), com acesso do público, de 12h às 7h de amanhã (2), quando será celebrada missa de corpo presente. O enterro acontecerá no Parque da Paz, às 9h da terça-feira, onde está o túmulo dos pais do artista. O Governo do Cera se responsabilizou pelo translado do corpo.

Tanto o Governo do Estado quando a Prefeitura de Fortaleza decretaram luto oficial de três dias por sua morte.

A obra

O artista nasceu em Sobral, batizado Antônio Carlos Belchior (o antigo parceiro e sócio Jorge Mello sustenta que o quilométrico "Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes" foi inventado, para fazer troça com um repórter que certa vez o entrevistou). Chegou a cursar Medicina em Fortaleza, mas logo abandonou a faculdade para investir na música.

Em Fortaleza, atuou numa cena em formação, por onde circulavam figuras como Raimundo Fagner e Ednardo. Como eles, Belchior se mudou para o Sudeste. Primeiro, para o Rio de Janeiro, onde participou de festivais da canção - e venceu o IV Festival Universitário da MPB, com a música "Na Hora do Almoço". O compositor chamou a atenção e foi gravado por Elis Regina.

O álbum de estreia, "Mote e Glosa" (1974), não teve o sucesso esperado. O segundo foi editado em 1976, pela PolyGram. O artista já se avizinhava dos 30 anos e assistia ao sucesso de colegas de geração, como Fagner e Ednardo, contratados por gravadoras e estourando nas paradas. Belchior foi para uma espécie de tudo ou nada com o disco.

"Alucinação" foi produzido por Marco Mazzola e contou com uma seleção de músicos de fazer inveja - gente que dava suporte para Roberto Calos, Raul Seixas, Tim Maia e outros figurões da MPB. E assim o cearense estreou com um clássico, carregado de sonoridade blueseira e exibindo suas letras longas, cheias de angústia e de crítica ao mundo de seu tempo, claramente inspiradas na lírica de Bob Dylan. Em sua discografia, é o disco que concentra o maior número de sucessos de sua autoria: "Apenas um rapaz latino-americano", "Velha roupa colorida", "Como nossos pais", "Sujeito de sorte", "A palo seco", "Fotografia 3x4", além da faixa-título.

Artista de sucesso, Belchior continuou lançando discos por grandes gravadoras (foram 23 no total), como Warner, PolyGram e BMG. Lançou seu último trabalho de estúdio há 15 anos. "Pessoal do Ceará" foi registrado em parceira com Ednardo e Amelinha. Na última década, com Belchior ausente, instituiu-se um paradoxo. Por um lado, seu trabalho passou a repercutir entre novas gerações, de fãs e compositores. Recebeu homenagens, tributos (em 2005, foi agraciado com o prêmio Sereia de Ouro, promovido pelo grupo Edson Queiroz); multiplicaram as interpretações de suas canções nos palcos. Belchior virou um artista cult.

Por outro lado, sua obra recebeu pouquíssima atenção das gravadoras. No ano passado, a Universal Music lançou a caixa de CDs "Três Tons de Belchior" - com os discos "Alucinação", "Melodrama" (1987) e "Elogio da Loucura" (1988) - e ficou por aí.
Serviços de streaming, como o Spotify, tem em seu catálogo uma discografia desordenada, com datas e títulos errados, álbuns de inéditas misturados com antologias e lacunas feias, como a ausência de "Mote e Glosa" - o LP de estreia de Belchior.

Afastamento

Ainda em 2005, começava uma reviravolta na vida do sobralense, que abandonou a então mulher Ângela Belchior para viver com a produtora cultural Edna Prometheu, depois de conhecê-la na capital paulista, no ateliê do artista plástico cearense Aldemir Martins.

A partir daí, gradativamente foi deixando de fazer shows e se afastando dos amigos. Largou uma agenda de apresentações, patrimônio e bens pessoais - roupas, documentos, quadros, automóveis e apartamento.

Por causa de processos (por não pagamento de pensão alimentícia a três dos quatro filhos e um de natureza trabalhista), teve contas bancárias bloqueadas e ficou impedido de retirar dinheiro relativo aos seus direitos autorais.

Por não pagar as pensões, teve dois mandados de prisão expedidos contra ele. Chegou a se abrigar numa instituição de caridade no Rio Grande do Sul e morar de favor na casa de fãs que nem conhecia, depois de perambular com Edna por hoteis em diferentes cidades e até no Uruguai - várias vezes, sem pagar as contas.

Em 2009, o caso ganhou repercussão nacional com uma matéria no Fantástico (Rede Globo). Nem assim, Belchior retomou as atividades profissionais, recusando eventuais propostas e ficando incomunicável com família, empresário e quase todos os amigos. . Nunca resolveu as pendências judiciais que o cercavam.

Nesses mais de dez anos, o público de Fortaleza teve um único respiro para matar a saudade: seu último show na capital cearense, em 2007, por ocasião do aniversário de 281 anos da cidade. A convite da Prefeitura, Belchior apresentou-se na Praça do Ferreira; na mesma noite, um de seus grandes parceiros e amigos, Ednardo, também tocou no mesmo palco.