Uma inspeção realizada no Centro Socioeducativo Aldaci Barbosa Mota, em Fortaleza, pelo Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos do Ceará (CEDDH), pelo Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDECA Ceará) e pelo Fórum Cearense de Mulheres (FCM), no fim de setembro, registrou que adolescentes internadas na unidade, relatam, dentre outras situações, terem passado por isolamento forçado em dormitórios conhecidos como “tranca” e serem obrigadas a usar algemas em alguns momentos. O Centro, no bairro Padre Andrade tem capacidade para 50 adolescentes, e é o único destinado exclusivamente ao gênero feminino no Estado.
A Sistema Estadual de Atendimento Socioeducativo (Seas) informou, em nota, que “até a presente data, não teve acesso ao documento mencionado”. E acrescentou “em nenhum Centro Socioeducativo há a utilização de espaços de isolamento”. Mas, quanto ao uso de algemas disse que a Aldaci Barbosa executa medida socioeducativa de internação, desta forma, “há previsão legal e regulamentada por portaria de segurança preventiva sobre o uso de algemas. Contudo, as algemas são utilizadas apenas em casos excepcionais, devidamente registrados em livro de ocorrências, tendo respaldo na Lei do Sistema Nacional de Socioeducação e no Estatuto da Criança e do Adolescentes, bem como seguindo as orientações da Súmula Vinculante nº 11 do Supremo Tribunal Federal”.
Conforme o relatório, além das situações mencionadas, as internas também evidenciaram sofrer discriminação por ser menina ou por conta da orientação sexual. A inspeção tinha como objetivo monitorar se a unidade havia adotado medidas de prevenção à propagação do novo coronavírus. Na vistoria, ocorrida em 25 de setembro, representantes do Conselho, cujo uma das competências é realizar visitas às unidades de atendimento socioeducativo, percorreram 11 dormitórios para ouvir as adolescentes.
No dia da inspeção, o centro socioeducativo tinha 33 adolescentes. Uma delas cumpria semiliberdade, 18 cumpriam internação, e 14 estavam em internação provisória. No relatório as entidades alegam que dos 11 alojamentos visitados, em sete, as adolescentes relataram ser uma prática cotidiana dos socioeducadores “algemá-las nas grades dos dormitórios e do refeitório durante a noite e a madrugada”. Segundo os depoimentos, a ação é uma forma de sanção para quem bateu na grade ou gritou para solicitar algum tipo de atendimento. O documento aponta que, segundo os relatos, as adolescentes ficariam algemadas de 3 a 4 horas por dia.
Isolamento é usado com castigo, afirmam internas
Outra denúncia é que as internas receberam a sanção de isolamento forçado no dormitório chamado “tranca”. Essa prática, reforçam as entidades, é ilegal e foi vetada pela Justiça do Ceará em 2019, quando em uma ação judicial a 3ª Vara da Infância e Juventude de Fortaleza determinou o fim da ‘tranca’, identificada como uma prática de violação ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Segundo as adolescentes, três dormitórios na unidade (13, 14 e 15) são usados para a tranca. Na visita, aponta o relatório, os representantes da entidades não puderem ter acesso a esses locais, pois, a direção da unidade alegou que os alojamentos são usados como triagem/recepção para novas internas, e em cumprimento ao protocolo sanitário, na ocasião, adolescentes estariam passando pela quarentena de 14 dias.
Outro problema é que em cinco dos onze dormitórios, as adolescentes disseram ter vivido situações de discriminação de gênero. Uma das atitudes, registra o documento, é a separação de alojamentos de acordo com orientação sexual, o que, segundo as entidades que realizaram a vistoria, “não encontra amparo legal”.
Outra situação preocupante, conforme o relatório, é a presença no centro de uma adolescente grávida e também de mães de crianças com idade inferior a 12 anos. Sobre essa situação específica, o Cedeca informa que oficiou a Superintendência do Sistema Estadual de Atendimento Socioeducativo (Seas), a Defensoria Pública, o Ministério Público e 5ª Vara da Infância e Juventude. Quanto a presença de adolescentes grávidas, o juiz titular da 5ª Vara da Infância e Juventude, Manuel Clístenes alega que “o fato de ser gestante ou lactante não dá salvo conduto para a prática de atos infracionais. As jovens que estão em tal situação no Centro Aldaci Barbosa praticaram atos com violência e/ou grave ameaça e, desta forma, não estão contempladas, de forma automática, pelo teor da decisão do STF, para ficarem em liberdade”. Para definir a situação dessas internas, explica, ele aguarda a conclusão de relatórios psicossociais. Ele reitera que na decisão de 2018 que concedeu o Habeas Corpus as mulheres dessas condições, o ministro Ricardo Lewandowski foi claro ao excluir os casos de violência e/ou grave ameaça.
Problemas estruturais
A Superintendência acrescentou que o centro socioeducativo “é uma unidade de referência no atendimento, sem históricos de situações de crise ou violação de Direitos ao longo de sua trajetória” e afirmou que “o centro se destaca por apresentar metodologias e práticas socioeducativas que são exemplos de trabalho positivo na unidade”. O órgão também ressaltou que possui um setor de Corregedoria para apurar irregularidades que sejam constatada nas unidades socioeducativas. “Caso haja a comprovação, os envolvidos são submetidos a um procedimento de responsabilização”, finaliza.
Questionado sobre os problemas registrados no documento, o juiz titular da 5ª Vara da Infância e Juventude explicou que teve acesso ao relatório, mas ainda não finalizou a leitura. De acordo com ele, o Aldaci Barbosa tem problemas crônicos relacionados à precariedade na infraestrutura, por não ter o tamanho adequado. “O centro é pequeno e não tem a estrutura exigida por Lei e só tem como ter se o Estado desapropriar as casas vizinhas para aumentar”, acrescenta.
Sobre as denúncias de uso de algemas e da prática da tranca, Clístenes disse não ter conhecimento e que, ao concluir a leitura do relatório, irá “tomar as devidas providências”. O juiz também afirma que no Aldaci, por ser a única unidade para o gênero feminino no Estado, há dificuldades, pois, o local abriga adolescentes cumprindo diversos tipos de medidas diferentemente de outros centros socioeducativos que acolhem os internos conforme a medida a ser executada.
Em relação à prática ilegal da “tranca”, Clístenes afirmou que as informações oficiais da SEAS garantem que “foi abolida”. “A questão é que como o centro é muito reduzido há três dormitórios situados em uma outra área do centro que são utilizadas para adolescentes que estão causando tumulto. Não com a finalidade de castigo. Mas com a finalidade de separar das outras jovens para evitar um transtorno maior”, assegura.
De acordo com o juiz, em suas inspeções, realizadas nos centros a cada 2 meses, os três dormitórios separados no Aldaci Barbosa são usados como forma de “evitar que ocorra um conflito de maiores proporções”. “Não é a tranca. São dormitório semelhantes aos demais, mas ficam em uma ala separada. Pelo que fui informado pela direção, as jovens que são colocadas lá o objetivo não é castigar é apenas conter o conflito. Vamos apurar isso. Mas não é algo que seja do nosso conhecimento”, acrescenta.