Ainda em vida e durante as oito décadas após a morte de Lampião,
cresceu a imagem de "bandido-herói", que tirava dos ricos para dar aos
pobres. Em 1931, o New York Times afirmou que seria espécie de
Lampião, que tira dos ricos e dá aos pobres. Ideia que esconde o
assassino brutal, que matou inclusive mulheres, crianças e idosos de
forma indiscriminada e que praticava estupros e outras violências contra
mulheres. As boas ações existiram, mas eram exceção. Leia mais
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Lampião
sabia que estava sendo visto e gostava disso. Quando seu espólio
pessoal foi resgatado naquela madrugada de 28 de julho de 1938, momentos
depois da morte do bando pelas forças volantes do tenente João Bezerra,
encontraram em seu bornal um exemplar do livro que levava seu nome, de
autoria do escritor e médico sergipano Ranulfo Prata. Às margens das
páginas, anotações do próprio Lampião sobre o texto.
Outro escritor,
Leonardo Mota, cearense de Pedra Branca, escreveu em 1930 que Lampião
parecia "possuir a volúpia da espetaculosidade". "Era o maior
marqueteiro de si mesmo", afirma em entrevista a O POVO o historiador
Frederico Pernambucano de Mello. Leia mais
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O
maior risco que Lampião, o Rei do Cangaço, vingativo e temido até em
pensamento, correu foi quando ficou frente a frente com Maria Gomes de
Oliveira, uma baiana alva, baixinha, de nariz arrebitado e pernas
inesquecíveis, que tinha sido mulher de Zé de Neném-sapateiro aos 15
anos e, naquele 1928, com 18, voltava a ser dona de si. Desde que lhe
pediu que bordasse as iniciais CVF em 15 lenços de seda, quando de
passagem pela fazenda de Zé Felipe e dona Déa, o Capitão ficou sob a
mira da filha deles. Leia mais
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No
interior de um Brasil bruto, lá onde a cultura do domínio e da
obediência ainda era intocada, as mulheres sertanejas - mais longe no
espaço e no tempo do que as outras - cumpriam a sina primária de serem
mulheres: nasciam para casar e ter filhos, sem direito à vontade e à
história próprias. Ao cruzar os sertões nordestinos, indo já para a
década de 1930, o cangaço significou uma arriscada rota de fuga para 60,
70 mulheres (o registro histórico é inexato). Leia mais
Confira:
A
transformação de Maria Gomes de Oliveira, a Maria de Déa, em estrela
nacional começou no dia 29 de dezembro de 1936. Naquela terça-feira, os
leitores de O Povo, de Fortaleza, viram, pela primeira vez, a imagem da
mulher que largara o marido para viver com o fora da lei mais procurado
do Brasil.
DOIS CAMINHOS PARA PERCORRER AS ROTAS DE LAMPIÃO
Pelo tempo ou pela geografia, confira duas maneiras de conhecer a trajetória do rei do cangaço
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Os
itinerários de Lampião demarcam um mapa próprio de violência pelos
sertões. Certa feita, chegou a declarar que sonhava ser governador.
Gostaria de administrar um novo estado sertanejo, formado com parcelas
de Pernambuco, Alagoas, Bahia e Sergipe. Nunca pisou em capital alguma.
Com ferramenta de georreferenciamento do Google, o mapa abairo elenca 84
momentos da vida do maior dos cangaceiros, situados conforme a
localização geográfica. Separado por cores e camadas, o mapa mostra
episódios de guerra e paz marcantes na trajetória. E dá a noção da
extensão do terror que varreu os sertões. Leia mais
Linha do tempo
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Mossoró,
no Rio Grande do Norte, foi a maior cidade atacada por Virgolino
Ferreira da Silva. Sua ação mais ousada - e sua maior derrota. O bando
de Lampião encontrou feroz resistência e, após cerca de uma hora e meia
de combate, bateu em retirada. Na fuga, dirigiram-se ao Ceará. Em 15 de
junho de 1927, chegaram a Limoeiro do Norte, no Vale do Jaguaribe. O
bando entrou na cidade dando vivas ao governador José Moreira da Rocha e
ao padre Cícero Romão Batista. De todos os estados nos quais esteve, o
Ceará foi, de longe, o que menos sofreu com a violência imposta por
Lampião. Leia mais
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A
longevidade de Virgolino como maior bandido dos sertões se explica em
grande parte por estratégias que consistiam em lutar apenas quando em
condições favoráveis, fugir quando o cenário se tornava desfavorável,
esconder os rastros e manter ampla política de alianças. Métodos
semelhantes às guerrilhas, mas desprovidas do caráter político. Leia mais
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Ao
longo dos 16 anos nos quais foi o principal criminoso dos sertões,
Virgolino Ferreira da Silva acumulou muitos inimigos que o combateram
com destemor e empenho. Para desgosto de vários deles, Lampião veio a
morrer pelas mãos de alguém que não era referência de coragem nem
honestidade, era suspeito de colaborar com os cangaceiros e liderou o
ataque em Angicos quase por acaso. Leia mais
HÁ 80 ANOS, MORRIA O MAIOR BANDIDO DO BRASIL
Em 29 de julho de 1938, o New York Times publicou
que "one-eyed Lampeão", "one of the most ruthless killers of the
Western World, havia sido morto. O mais prestigioso jornal do mundo se
referia ao "Lampeão de um olho só" como "um dos mais temíveis
cangaceiros do mundo ocidental".
Na
orelha do livro do historiador Billy Jaynes Chandler, que escreveu o
que talvez seja a mais importante obra sobre o cangaceiro, é dito: "O
que Jesse James foi para os Estados Unidos, Lampião foi para o Brasil, e
até mesmo em dose mais forte". Soaria provinciano, não fosse a obra de
um americano.
Passados 80 anos, não se tem a
dimensão do interesse e curiosidade mundiais despertados pelo chefe de
um bando criminoso que nunca pisou numa capital de estado e restringiu
suas atividades às regiões mais pobres de um País então ainda mais
periférico. Durante 16 anos, foi o criminoso mais temido, procurado e
também admirado dos sertões. Não há paralelo em trajetória tão duradoura
e bem-sucedida nesse tipo de atividade.
No mesmo dia em que a notícia estava no New York Times, O POVO trazia
em manchete: "Decapitados Lampeão, sua mulher e nove comparsas". A
informação foi festejada mesmo em locais dos quais o cangaceiro jamais
chegara perto. "A notícia, como era natural, causou viva sensação no
Rio, cuja população aguardou com enorme ansiedade sua confirmação",
informou O POVO naquele dia. A festa na então capital
federal era previsível, pois o combate ao cangaço se tornara questão de
Estado para o governo Getúlio Vargas. Estava em seu começo a ditadura do
Estado Novo - e nada era mais velho e atrasado que o cangaço.
A ansiedade quanto à confirmação, relatada pelo O POVO,
era previsível. Em pelo menos oito ocasiões, houve informações falsas
sobre a morte do "rei do Cangaço". A última delas havia surgido em
Sergipe e divulgada em 12 de janeiro no O POVO e um dia
depois no New York Times: "Nº 1 bad man dies in his bed in Brazil" -
"homem mau número um morre em sua cama no Brasil. A informação,
equivocada, apontava que Lampião teria sido vitimado por tuberculose.
A notícia da morte no New York Times mostra
que a fama do cangaceiro ia muito além do Nordeste e do Brasil. E o
fato de o boato sobre sua morte ter sido veiculado antes demonstra que o
interesse por ele não era esporádico. Virgolino Ferreira da Silva -
conforme a grafia com "O" de sua certidão de nascimento - era personagem
sem paralelo no Ocidente. Para os estrangeiros, tratava-se de
curiosidade pitoresca. Para os Estados Unidos, soava como reminiscência
do Velho Oeste.
Para o sertanejo, era
personagem algo que lendário. Atribuíam-se a ele poderes místicos,
"corpo fechado" para tantas vezes ter escapado. Ao morrer, falou-se que
teria sido envenenado com vinho. Décadas depois, dizia-se que ainda
estava vivo e refugiado no então pouco povoado estado de Goiás. O
cangaço - e seu "rei - influenciaram decisivamente a ideia que se faz de
Nordeste, inclusive esteticamente. A mitologia em torno de Lampião
criou ainda a imagem, até hoje difundida, de um "bandido social", um
Robin-Hood dos sertões. Não era bem assim.
Lampião
não morreu de tuberculose, tampouco pelas mãos de algum de seus
inimigos mais empenhados, corajosos ou competentes. A ação que
finalmente o matou foi liderada por policial suspeito de colaboração com
criminosos e teve muito de acaso.
A partir do
acervo do O POVO e do livro de Chandler, O POVO Online inicia série de
reportagens sobre os 80 anos da morte do rei do cangaço, o alcance da
violência que espalhou e a marca que deixou no imaginário dos sertões.
ÉRICO FIRMO