Nas redes sociais, em grupos de mensagens, em mesas de bar.
O lamento
era um só, uníssono: a enorme perda que a morte de Belchior representa
para a música popular brasileira. Ainda que tenha "sumido" dos holofotes
e, até onde se sabe, parado de produzir - um afastamento que incluiu
amigos próximos e família -, o mistério sobre por onde andava e o que
fazia o "rapaz latino-americano" deixava uma nesga de esperança de que
ele voltasse aos palcos ou aos estúdios.
Com a morte confirmada do cantor, porém, cessam as esperanças de vê-lo
novamente. Belchior faleceu na manhã deste domingo (30), na cidade de
Santa Cruz (RS), onde morava com a companheira, Edna Assunção de Araújo
(Edna Prometheu), vítima de uma dissecção da aorta - rasgo da parede da
principal artéria do corpo humano, causando grande perda de sangue.
Segundo o delegado Luciano Menezes, responsável pela investigação,
Belchior morreu durante o sono, ouvindo música clássica, no sofá da
sala. Segundo Prometheu, que encontrou o corpo pela manhã, ele não tinha
problemas de saúde nem tomava medicação.
O corpo do cantor está previsto para chegar hoje (1) a Fortaleza às
5h30. Até o fechamento desta edição, a informação da Secretaria de
Cultura do Estado é que ele será levado a Sobral para ser velado no
Theatro São João, de 7h às 10h, e, de lá, seria trazido novamente para
Fortaleza para outro velório, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura
(CDMAC), com acesso do público, de 12h às 7h de amanhã (2), quando será
celebrada missa de corpo presente. O enterro acontecerá no Parque da
Paz, às 9h da terça-feira, onde está o túmulo dos pais do artista. O
Governo do Cera se responsabilizou pelo translado do corpo.
Tanto o Governo do Estado quando a Prefeitura de Fortaleza decretaram luto oficial de três dias por sua morte.
A obra
O artista nasceu em Sobral, batizado Antônio Carlos Belchior (o antigo
parceiro e sócio Jorge Mello sustenta que o quilométrico "Antônio Carlos
Gomes Belchior Fontenelle Fernandes" foi inventado, para fazer troça
com um repórter que certa vez o entrevistou). Chegou a cursar Medicina
em Fortaleza, mas logo abandonou a faculdade para investir na música.
Em Fortaleza, atuou numa cena em formação, por onde circulavam figuras
como Raimundo Fagner e Ednardo. Como eles, Belchior se mudou para o
Sudeste. Primeiro, para o Rio de Janeiro, onde participou de festivais
da canção - e venceu o IV Festival Universitário da MPB, com a música
"Na Hora do Almoço". O compositor chamou a atenção e foi gravado por
Elis Regina.
O álbum de estreia, "Mote e Glosa" (1974), não teve o sucesso esperado.
O segundo foi editado em 1976, pela PolyGram. O artista já se
avizinhava dos 30 anos e assistia ao sucesso de colegas de geração, como
Fagner e Ednardo, contratados por gravadoras e estourando nas paradas.
Belchior foi para uma espécie de tudo ou nada com o disco.
"Alucinação" foi produzido por Marco Mazzola e contou com uma seleção
de músicos de fazer inveja - gente que dava suporte para Roberto Calos,
Raul Seixas, Tim Maia e outros figurões da MPB. E assim o cearense
estreou com um clássico, carregado de sonoridade blueseira e exibindo
suas letras longas, cheias de angústia e de crítica ao mundo de seu
tempo, claramente inspiradas na lírica de Bob Dylan. Em sua discografia,
é o disco que concentra o maior número de sucessos de sua autoria:
"Apenas um rapaz latino-americano", "Velha roupa colorida", "Como nossos
pais", "Sujeito de sorte", "A palo seco", "Fotografia 3x4", além da
faixa-título.
Artista de sucesso, Belchior continuou lançando discos por grandes
gravadoras (foram 23 no total), como Warner, PolyGram e BMG. Lançou seu
último trabalho de estúdio há 15 anos. "Pessoal do Ceará" foi registrado
em parceira com Ednardo e Amelinha. Na última década, com Belchior
ausente, instituiu-se um paradoxo. Por um lado, seu trabalho passou a
repercutir entre novas gerações, de fãs e compositores. Recebeu
homenagens, tributos (em 2005, foi agraciado com o prêmio Sereia de
Ouro, promovido pelo grupo Edson Queiroz); multiplicaram as
interpretações de suas canções nos palcos. Belchior virou um artista
cult.
Por outro lado, sua obra recebeu pouquíssima atenção das gravadoras. No
ano passado, a Universal Music lançou a caixa de CDs "Três Tons de
Belchior" - com os discos "Alucinação", "Melodrama" (1987) e "Elogio da
Loucura" (1988) - e ficou por aí.
Serviços de streaming, como o Spotify, tem em seu catálogo uma
discografia desordenada, com datas e títulos errados, álbuns de inéditas
misturados com antologias e lacunas feias, como a ausência de "Mote e
Glosa" - o LP de estreia de Belchior.
Afastamento
Ainda em 2005, começava uma reviravolta na vida do sobralense, que
abandonou a então mulher Ângela Belchior para viver com a produtora
cultural Edna Prometheu, depois de conhecê-la na capital paulista, no
ateliê do artista plástico cearense Aldemir Martins.
A partir daí, gradativamente foi deixando de fazer shows e se afastando
dos amigos. Largou uma agenda de apresentações, patrimônio e bens
pessoais - roupas, documentos, quadros, automóveis e apartamento.
Por causa de processos (por não pagamento de pensão alimentícia a três
dos quatro filhos e um de natureza trabalhista), teve contas bancárias
bloqueadas e ficou impedido de retirar dinheiro relativo aos seus
direitos autorais.
Por não pagar as pensões, teve dois mandados de prisão expedidos contra
ele. Chegou a se abrigar numa instituição de caridade no Rio Grande do
Sul e morar de favor na casa de fãs que nem conhecia, depois de
perambular com Edna por hoteis em diferentes cidades e até no Uruguai -
várias vezes, sem pagar as contas.
Em 2009, o caso ganhou repercussão nacional com uma matéria no
Fantástico (Rede Globo). Nem assim, Belchior retomou as atividades
profissionais, recusando eventuais propostas e ficando incomunicável com
família, empresário e quase todos os amigos. . Nunca resolveu as
pendências judiciais que o cercavam.
Nesses mais de dez anos, o público de Fortaleza teve um único respiro
para matar a saudade: seu último show na capital cearense, em 2007, por
ocasião do aniversário de 281 anos da cidade. A convite da Prefeitura,
Belchior apresentou-se na Praça do Ferreira; na mesma noite, um de seus
grandes parceiros e amigos, Ednardo, também tocou no mesmo palco.