O presidente determinou nesta segunda-feira (30) que as entrevistas
coletivas de imprensa sobre o combate à covid-19 passassem a ser
realizadas no Palácio do Planalto, em vez de no Ministério da Saúde, e
que as notas públicas dos ministérios sobre o tema fossem aprovadas
previamente pela Secretaria de Comunicação do Planalto.
Na noite de terça-feira, sob contestação de setores do próprio governo,
da população, de governadores e de empresários, Bolsonaro fez um
pronunciamento em rádio e televisão no qual adotou tom mais moderado e
defendeu a adoção de "medidas protetivas", ressaltando que a missão de
seu governo era "salvar vidas sem deixar para trás os empregos".
No pronunciamento anterior, em 24 de março, o presidente havia tratado a
pandemia com desdém, chamando a covid-10 de "gripezinha" e pedindo às
pessoas que voltassem à normalidade .
A posição do presidente pode, porém, mudar mais uma vez - desde o
início do governo, Bolsonaro por diversas vezes sinalizou com uma
possível moderação para, em seguida, retomar discursos de radicalização e
polarização.
Isolamento do presidente
A iniciativa de Bolsonaro de concentrar o anúncio de medidas sobre a
covid-19 no Palácio do Planalto se deu em meio a um processo de
esgarçamento do seu apoio em diversos setores, avalia a cientista
política Marcia Ribeiro Dias, professora da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (Unirio).
Além da divisão dentro do governo - ministros importantes, como Luiz
Henrique Mandetta (Saúde), Sergio Moro (Justiça) e Paulo Guedes
(Economia), manifestaram apoio ao isolamento social ou compreensão com a
importância da medida -, Dias identifica desgaste do presidente entre a
população, o setor militar e empresários, o que o acabou deixando
"muito isolado".
"Tivemos, nos últimos 12 dias, panelaços nas principais capitais, não
se viu algo assim nem no auge da impopularidade da [ex-presidente] Dilma
[Rousseff]. Entre os militares, há sinais demonstrando contrariedade
com o discurso do presidente. E, mesmo nos segmentos empresariais mais
bolsonaristas, a maioria entendeu que não dá para andar na contramão do
mundo", afirma.
Para a cientista política Rachel Meneguello, da Unicamp, Bolsonaro
vinha perdendo controle sobre a narrativa do seu próprio governo. "A
centralização da comunicação é apenas um recurso do presidente para
procurar retomar voz nacional, mas não creio que, à essa altura, em que a
gravidade da situação mundial e nacional está já compreendida por boa
parte da população, essa estratégia tenha sucesso", diz.
Atrito com governadores
Outra imagem do isolamento de Bolsonaro aparece na relação com os
governadores, que têm papel fundamental na reação da saúde pública à
crise da covid-19 e vêm buscando uma coordenação independente do governo
federal.
Antigos aliados do presidente e possíveis candidatos ao Planalto em
2022, os governadores de São Paulo, João Doria (PSDB), e do Rio, Wilson
Witzel (PSC), hoje o fustigam. Na segunda-feira, o paulista pediu que as
pessoas "não sigam as orientações do presidente da República", enquanto
o fluminense afirmou que Bolsonaro poderia ser processado por "crime
contra a humanidade" se insistisse em se posicionar contra o isolamento
social em meio à pandemia.
O governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), que mantinha até o início
do ano proximidade com Bolsonaro, também rompeu com o presidente por
causa de divergências sobre como conduzir o país na crise da covid-19. O
racha entre o presidente e os governadores é, segundo Meneguello, a
"principal fissura" enfrentada neste momento por Bolsonaro.
A cientista política Magna Inácio, professora da Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG), pondera que o distanciamento entre o presidente e
os chefes de Executivo dos estados é grave, pois afeta a capacidade de
reação à pandemia, mas consistente com o padrão de atuação política do
presidente, que desde o início do mandato manteve uma estratégia de
"confronto institucional", seja com o Congresso e o Supremo Tribunal
Federal, seja com os governadores.
Ao contrário dos embates com o Congresso, porém, "se Bolsonaro tentar
bater de frente com os governadores, ele vai perder", afirma Dias, que
vê na centralização da comunicação uma tentativa de o presidente "chamar
a responsabilidade pela condução do processo para dentro do Palácio do
Planalto e tentar se incluir no sentido político".
Outro aspecto a ser observado nos próximos passos de Bolsonaro é sua
capacidade de liderar o país numa direção construtiva e coordenada.
Inácio, da UFMG, afirma que esse não é o padrão de comportamento do
presidente até o momento, visto que ele prefere descentralizar a gestão -
inclusive criando a figura dos "superministros", como Guedes e Moro - e
reagir apenas a algumas decisões pontuais, quando percebe que podem ter
alto custo político.
Ela afirma que Bolsonaro teve, desde o início do mandato, diversas
oportunidades para assumir o domínio da narrativa nacional na figura de
um líder, como na tragédia de Brumadinho, nas queimadas da Amazônia e no
vazamento de óleo nas praias do Nordeste, mas preferiu seguir se
colocando como alguém à margem do sistema político e direcionando seu
arsenal contra esse sistema.
Na trilha de Trump
A posição do presidente até o pronunciamento da noite de terça-feira,
de defender o isolamento apenas de idosos e pessoas em grupos de risco e
conclamar as pessoas a voltarem à normalidade, era uma estratégia para
transferir para outros líderes políticos a responsabilidade pela grave
recessão econômica que virá, diz a cientista política Talita Tanscheit,
da UFRJ.
"Dessa forma, se conseguíssemos achatar a curva [de novos infectados e
mortos pela covid-19], diante do estrago da crise econômica, ele poderia
dizer que a gripe 'não era tão grave assim' e que foram os outros
líderes que defenderam o isolamento que 'acabaram com a economia", diz.
Segundo Tanscheit, esse discurso repetia a mesma estratégia usada pelo
presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, no começo da pandemia,
quando o líder norte-americano também minimizou os riscos da covid-19,
dizendo que ela iria embora logo e que a situação estava sob controle.
No domingo passado, porém, Trump mudou de posição, estendeu o isolamento
social no país até o dia 30 abril e alertou que as próximas duas
semanas serão difíceis.
Ao fazer o seu pronunciamento mais recente, de terça-feira, Bolsonaro
manteve o padrão de acompanhar o presidente dos Estados Unidos, mas com
alguns dias de atraso.
"Desde o primeiro dia de governo, Bolsonaro tem sido muito subserviente
aos Estados Unidos. E sua estratégia inicial [sobre a covid-19] era
alinhada à dos Estados Unidos. Em geral, as declarações do Bolsonaro
reproduziram o discurso do Trump depois de 24 horas ou 48 horas. E aí o
Trump acabou mudando a estratégia dele, deu um cavalo de pau", afirma
Tanscheit.
A diferença, diz, é que o Brasil vinha se recuperando lentamente de uma
crise econômica, com um desempenho do PIB fraco em 2019, enquanto os
EUA estão em um bom momento econômico.
Um bom desempenho da economia, afirma Inácio, da UFMG, era visto pelo
próprio Bolsonaro como "a única tábua de salvação" do seu mandato. "Mas
tivemos um PIB pífio no ano passado, e essa tábua fica agora ainda mais
ameaçada pela pandemia", diz.