A
Operação Lava Jato é responsável pela sensação de democratização do
Direito Penal brasileiro. Se antes os acusados de crimes violentos
ocupavam as primeiras páginas do noticiário, em 2014 esse cenário mudou
radicalmente e pessoas absolutamente estranhas à Justiça Criminal se
viram como alvos da noite para o dia.
Inspirada
nos trabalhos realizados na Itália nos anos 90, a Operação conduzida na
cidade de Curitiba inicialmente focou em doleiros, lobistas, políticos
de baixo escalão, diretores executivos de empresas públicas, operadores
financeiros e por essa via chegou-se até ao ex-Presidente da República.
Como
um novelo de lã, quão mais se puxava, mais surgiam elementos para
ensejar novas investigações. O instituto da delação premiada e o uso da
prisão provisória foram tratados como essenciais ao sucesso da Operação,
e esses atos eram acompanhados ou até mesmo antecipados à grande
imprensa – sob justificativa de proteger interesse público.
O
público passou não apenas a acompanhar mas também a fazer o seu próprio
julgamento diante da riqueza de detalhes transmitidos pelos condutores
da Operação. E a sociedade, então, começou a ver sujeitos engravatados
no noticiário policial.
A
sentença popular condenou a política, principalmente. Em boa escala,
passou a ser tratada como atividade quase-criminosa e instigou repulsa
àqueles que defendiam determinados valores políticos contrários – em
especial para contenção ao aparelhamento midiático e cultural de
estruturar o poder dessa Operação –, aos movimentos moralizantes. As
empresas de engenharia bruta, por sua vez, também foram atingidas pela
caça aos corruptos, o que foi sentido não só nos balanços de
contabilidade, mas fundamentalmente na absorção de mão de obra de todas
as qualificações.
Essa
mudança de paradigma foi tratada por muitos como o prenúncio da boa
nova ao país. Prova desse aparente sucesso é que o ex-juiz federal
Sérgio Moro, responsável pela condução dos trabalhos realizados perante a
13.ª Vara Federal de Curitiba/PR, foi alçado ao posto de Ministro da
Justiça e Segurança Pública, e o Procurador da República, Deltan
Dallagnol, passou a ser cogitado como sucessor de Raquel Dodge na
Procuradoria Geral da República.
Com
alguns políticos na cadeia e a apresentação de recuperação de valores
aos cofres públicos, esses personagens passaram a gozar de credibilidade
perante a opinião pública, pois o recado transmitido por eles era de
que ninguém estava acima da Justiça, por mais poderoso que fosse. A
confirmação de todo esse prestígio é que a Suprema Corte chegou a ter
sua autoridade questionada e afrontada algumas vezes, de modo que parte
de seus integrantes eram acusados de serem coniventes com práticas
ilegais ou apadrinhamento de supostos criminosos.
Era o cenário perfeito não fosse a atuação daqueles que um dia foram braço fiel da Operação Lava Jato: os Jornalistas. A divulgação feita pelo Intercept Brasil,
no dia 9 de junho de 2019, dando conta de que o objetivo da Operação
Lava Jato era muito maior do que o necessário combate à corrupção ou da
criação de um fundo bilionário com recursos recuperados da Petrobras.
Tratava-se, em verdade, de um ambicioso projeto de poder articulado nos
bastidores da Operação.
Conversas
trocadas entre Sergio Moro e Deltan Dallagnol deram conta de que o
então juiz jamais se portou como um ser desinteressado no resultado
final dos processos de sua responsabilidade, ou seja, de modo imparcial.
Longe disso: atuava como coordenador da acusação, sugerindo testemunha,
antecipando decisões, indicando provas e notas de esclarecimentos a
serem dados à imprensa, numa espécie de coach acusatório.
Assim, afastando nos processos, no que tange ao tratamento e garantias
dos acusados, a figura da pessoa humana como diretriz fundamental
orientadora das ações e limitações do Estado, como fonte constitucional
cumpridora do deve ser democrático.
Se
antes a imprensa era tratada como fundamental na revelação daquilo que
importava ao interesse público – colocada como um dos pontos mais
relevantes para o suposto sucesso da Operação –, agora não há dúvida que
a ordem inverteu-se. Os responsáveis pela divulgação dos conchavos
entre juiz e procurador(es) passaram a ocupar a primeira posição da
longa lista de inimigos da pátria e indignos de consideração. Já os
novos políticos (Sergio Moro e Deltan Dallagnol), que antes vestiam toga
e beca, vociferam agora contra seus antigos aliados na esperança de
salvarem seu heroísmo.
Vê-se,
assim, que o critério de eleição dos inimigos nunca se deu pelo que era
então anunciado: desvio de verbas públicas, prática de crimes graves ou
similares. Na verdade, a escolha dos amigos ou inimigos se dá a partir
de anseios pessoais, ainda que contrário às pretensões de Justiça. A
Justiça, aliás, foi apenas um véu que servia para escolher e perseguir
os inimigos ocasionais. Daí porque, o inimigo, para todo e qualquer
tirano, é o estranho, o estrangeiro, o outro, o discordante de suas
fundadas razões.
Acusar a equipe do Intercept Brasil
de crime contra o Estado é o exemplo mais claro desse projeto
totalitário. Olvidam-se os detratores da existência de uma Constituição
Republicana feita para, entre outras coisas, constranger autoridades
desrespeitosas à liberdade individual. Os jornalistas diretamente
envolvidos na divulgação dos fatos agem sob o manto de uma justificativa
constitucional para a obtenção e divulgação dos diálogos. É o que se
chama no direito penal brasileiro de causa supralegal de excludente de ilicitude.
Na
pseudossanha de salvar o Brasil dos grilhões da corrupção, Moro e
Dallagnol esqueceram-se de preservar mínimos aspectos de liturgia
capazes de fazer sua atuação não apenas parecer louvável, mas blindada a
quaisquer purgações.
O
STF terá o seu tempo e a sua oportunidade de ser taxado
(equivocadamente) de amigo ou inimigo da Lava Jato. Por ora, o
prenúncio, a boa nova, por ironia do destino veio apenas de fora
(GleenGreenwald). Portanto, resta àqueles quem tem apreço por democracia
e por justiça sem justiçamento, apenas lutar, encorajar e
defender sujeitos que vão engrossando diariamente a fileira de
“inimigos” e defensores das liberdades.
Assim,
fica a impressão de que ao assumirem o posto de heróis do cinema norte
americano, os recém-revelados gestores da Operação Lava Jato acabaram
como herói da literatura brasileira, Macunaíma, sem nenhum caráter.
Gilney Melo é advogado criminal, especialista em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Mauricio Fonseca é advogado criminal, pós-graduando em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.