Há poucos anos, era possível dizer que a
última grande manifestação da população brasileira havia sido em 1992,
quando das denúncias de corrupção envolvendo o então presidente Fernando
Collor. O movimento, conhecido como caras-pintadas, foi liderado por
estudantes e – entre agosto e setembro daquele ano – reuniu milhares de
cidadãos nas ruas. São Paulo, por exemplo, viu uma passeata que se
estima ter reunido cerca de 350 mil pessoas. Após esse episódio,
entretanto, foram quase duas décadas até que novas manifestações de
massa ocorressem no Brasil.
Em 2013, o Movimento Passe Livre (MPL)
iniciou uma cruzada contra o aumento de R$ 0,20 nas tarifas de
transporte público, sobretudo em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro,
Porto Alegre e Salvador. A movimentação ganhou corpo após forte
repressão policial, gerando uma comoção nacional em favor da causa do
MPL – e a estendendo para demandas de caráter de direitos básicos, como
Saúde, Educação e Segurança Pública. Um levantamento da Confederação
Nacional de Municípios apontou a participação de aproximadamente 2
milhões de brasileiros, em 438 municípios, nestas jornadas de junho de
2013.
Sem a mesma adesão nos anos posteriores, o
MPL viu suas manifestações minguarem. Enquanto isso, o Brasil viveu
momento histórico em 13 de março de 2016, na maior das manifestações em
favor do impedimento de Dilma Rousseff. Segundo a Polícia Militar, mais
de 3.5 milhões de pessoas se reuniram nos protestos ocorridos em 326
cidades. Números suficientes para colocarem o episódio como a maior
concentração de pessoas em um ato político no Brasil.
Após o impeachment, entretanto, muitos
escândalos políticos decorreram sem que houvesse manifestações populares
significativas nas ruas. Movimentos sociais e sociedade civil continuam
tentando ocupar esses espaços, mas sem que haja adesão maciça. Enquanto
isso, parlamentares, juízes e empresários se emaranham em episódios de
favorecimento ilegal, corrupção e desvios fiscais com a sensação de
certa calmaria. Para tentar entender a aparente apatia que se abateu na
sociedade brasileira, conversamos com um psicólogo e um cientista
social. Confira:
Cláudio Couto, doutor em Ciência Política pela USP e pós-doutor pela Universidade de Columbia
Questão multifatorial
“Essa letargia se dá por fatores
diversos. O primeiro é o de que as pessoas têm uma capacidade de
militância limitada. Elas se mobilizam e buscam certos objetivos, mas se
não dá certo, elas simplesmente se cansam. Se cansando, dão uma pausa.
Muito é por isso. Também há questão do objetivo cumprido. Por exemplo,
alguns saíram às ruas pelo impeachment da Dilma e conseguiram. Não veem
mais tanto pelo que se mobilizar.”
Estratégia
“Outro ponto: teve também aqueles
que saíram em defesa da ex-presidente e ‘perderam’, então há um
desânimo. Mas a esquerda tem uma questão estratégica de apostar no
desgaste do governo de Michel Temer, para influenciar as eleições de
2018. Interessa a eles ‘deixar o governo sangrar’. Lideranças que podiam
puxar a fila da mobilização optam por não o fazer.”
Alvo
“Muita gente foi pedir a saída do
Partido dos Trabalhadores, não por serem contrários à corrupção, mas
contra o PT em si, que caiu. Esse pessoal não é contra a corrupção de
Temer e de outros partidos, mas contra a do PT, por razões ideológicas.
Ou seja, há corrupções de um lado e há as de outro.”
Desalento
“Muita gente foi de boa-fé para a
rua achando que iria acabar com a corrupção do governo. Na sequência,
entretanto, houve uma piora da corrupção. As pessoas se cansam, não
enxergam na mobilização algo que irá propor alternativas. Em 2013, havia
objetivos na esteira da manifestação como a melhoria de serviços
públicos, o que não ocorreu. Até piorou. Isso gera um desalento. Muita
gente se desanima.”
Ciclos
“Claro que há motivos para
revoltar a população, mas é natural que a sociedade não se mobilize por
tempo demais. Depois de grandes manifestações a tendência são ondas de
calmaria. A crise piora, desanima, mas há uma capacidade limitada de
manifestação. Parece atingido esse limite.”
Eleições
“É sempre uma oportunidade de
novas mobilizações, gerando fatos novos e colocando em evidência o
debate político na rua. Pode sim fazer com que gente que estava parada
volte a se mobilizar, contra ou a favor de candidatos. Acredito que se
houver chances para Jair Bolsonaro, por exemplo, muita gente que está na
calmaria irá se mobilizar. O mesmo para o ex-presidente Luiz Inácio
Lula da Silva. Esse cenário de polarização ideológica pode voltar a
gerar uma mobilização bastante razoável.”
Cláudio Couto também é graduado
em Ciências Sociais pela USP, professor do Departamento de Gestão
Pública da Fundação Getúlio Vargas e colunista eventual de política no
Jornal Valor Econômico.
Sergio Luis Braghini, mestre em Psicologia pela PUC/Campinas e doutor em Ciências Sociais pela PUC/SP
Naturalização da corrupção
“Acostumou-se ou é um costume? Não
podemos esquecer que o capitalismo como o conhecemos tem um marco
fundamental na ascensão de um estamento social, de uma classe, que usou
da corrupção para chegar ao poder. A burguesia, como forma de
enfraquecer a monarquia francesa pedia aos produtores que não
repassassem todos os seus produtos para a monarquia, que enganassem os
fiscais do rei. Então, podemos dizer que faz parte do DNA histórico
(Freud diria do Ideal do Eu) do discurso e modus operandi da burguesia.
Quem não suporta a corrupção na maioria das vezes são os trabalhadores,
até porque se são pegos em corrupção são severamente punidos. Como o
discurso que prepondera nos meios de comunicação, no modo de vida
cotidiano, é o do que chamamos ‘pequena burguesia’, a corrupção é como
se fosse um hábito. Ela acha natural corromper um fiscal, um guarda,
conseguir burlar as leis, o imposto.”
Objeto palpável
“Se a corrupção faz parte do
discurso, não há uma letargia, mas justamente a calmaria que tudo segue
como antes. O que mobiliza não é a luta contra a corrupção, mas contra
‘O corrupto’. É quando esse inominável familiar que fica no fundo do ser
toma a forma de um objeto palpável, imaginário eu diria, que ele une a
multidão. Ele passa a estar ‘fora de mim’, ‘ele é asqueroso, sujo,
ameaçador, corrupto’. E podem ser as mulheres, os judeus, os comunistas,
os petistas. A estratégia de mobilização de massa precisa desse objeto e
assim pedir que seja destruído.”
Jornadas de junho
“Os protestos de 2013 entram numa
cadeia histórica que é o questionamento da esquerda. E de alguma maneira
colocam em dúvida se o Estado do bem-estar social realmente é possível.
Ali o movimento pelo passe livre (uma bandeira de esquerda questionando
o que seria um governo municipal de esquerda), por uma série de fatores
da sociedade brasileira, encontrou a paixão (bem como o ódio) reprimida
e foi se unindo a outros fatores incontroláveis. Mas o recuo do
movimento deixou o campo livre para a paixão fascista.”
Representatividade e opressão
“Desistente é o termo que eu
usaria [para definir o estado atual do brasileiro]. Mas essa é uma
estratégia do poder; uma forma de controle dos comportamentos. A
desconfiança está que a soberania, digo, a vontade da maioria (para
pensar em democracia parlamentar) não é levada em conta. As pessoas não
reconhecem os representantes que estão no Congresso e os representantes
não reconhecem a vontade da população. Há o exemplo recente das votações
sobre mudanças na CLT, na aposentadoria, na educação: todas sendo
feitas sem levar em consideração qualquer vontade. [O povo] não está
cansado, afinal a revolta tem sido cada vez mais reprimida. Até com
ameaça de golpe militar o Estado acenou. Nós tivemos as revoltas nas
escolas, contra o impeachment, contra o governo federal, contra o desvio
da merenda, todas reprimidas.”
Influência no pleito
“A tentativa é que não haja
movimentação, de forma que as eleições sejam anódinas, com candidatos de
pouca expressão popular. Principalmente à esquerda, pois assim restaria
um candidato anódino x extrema direita, mais ou menos como nas eleições
francesas em um passado recente. Contando que Sigmund Freud já havia
dito sobre a impossibilidade de governar, espero que o poder não consiga
tudo em sua estratégia. Que algo do imponderável possa balançar esse
conforto do poder.”
Sergio Luis Braghini também é
graduado em Psicologia pela Universidade Metodista e docente e
coordenador do curso de pós-graduação da Fundação Escola de Sociologia e
Política de São Paulo.
Por Guilherme Almeida (@almeidagc)