"Tanto assunto sério nessa cidade para discutir e
você vem falar de animal?". Essa era uma frase comum, há cerca de dez
anos, quando se tratava de abordar políticas públicas de proteção a
animais domésticos nos poderes Executivo e Legislativo no Ceará. Hoje, a
realidade é outra. A "pauta dos pets" cresceu com mais força a partir
de 2013, segundo analistas políticos, diante de mudanças no perfil das
famílias, da ampliação da classe média e de um novo formato de
participação e escolha de bandeiras políticas no País. Desde então, o
tema ganha cada vez mais espaço e mobiliza políticos novos e
tradicionais.
Em Fortaleza, já existe legislação que proíbe o uso de fogos de
artifício sonoros e a exibição de animais em circos, por exemplo, além
da criação de programas de consultas veterinárias e de castrações para
famílias de baixa renda - todos projetos que passaram pelo Legislativo e
pelo Executivo. Na última semana, o prefeito Roberto Cláudio (PDT)
assinou uma ordem de serviço para a construção de uma clínica
veterinária pública e anunciou projeto de transformar o zoológico da
Capital em um santuário de animais.
Na Câmara Municipal de Fortaleza, na Assembleia Legislativa do Ceará,
na Câmara dos Deputados e no Senado, tramitam dezenas de projetos que
tratam do combate aos maus-tratos, da permanência de animais em prédios
públicos e da disponibilidade de equipamentos de atendimento aos "pets",
dentre outros. Só o deputado federal Célio Studart (PV), eleito com a
bandeira de proteção aos animais, já protocolou mais de 50 propostas na
Câmara que envolvem o tema.
Histórico
Nem sempre foi assim. Titular da Coordenadoria Especial de Proteção e
Bem-Estar Animal (Coepa), da Prefeitura de Fortaleza, a ex-vereadora
Toinha Rocha lembra a dificuldade para tratar do assunto na Câmara
Municipal há sete anos. "Quase desisti da pauta animal. Toda vida em que
eu focava nesse assunto dentro do Plenário, a gente escutava os
cochichados, dizendo 'tanto assunto sério nessa cidade para discutir e
ela vem falar de animal'", pontua.
Em 2013, quando apresentou projeto para proibir vaquejadas em
Fortaleza, Toinha sofreu outra enxurrada de críticas. Nesse percurso,
houve uma aproximação do mandato da então vereadora com organizações
civis de proteção aos animais. Mesmo como parlamentar de oposição ao
prefeito, Toinha fez parte de muitos projetos pioneiros de discussão do
abandono de animais tanto na Câmara como na Prefeitura: a criação de um
grupo de trabalho para construir ações na área e a Frente Parlamentar de
Defesa dos Direitos dos Animais.
"Essa pauta reflete duas coisas: a mudança no perfil das famílias,
que mudou nos últimos 30 anos, com a redução do número de filhos e o
incremento do número de animais e, principalmente, o movimento de
ampliação da classe média. O discurso dos direitos dos animais, da
preservação, tem um apelo maior na classe média. Ela é ainda a grande
protagonista desse tipo de política", analisa o cientista político e
professor universitário Cleyton Monte.
Mesmo que o discurso se atrele especialmente a pessoas da classe
média, o benefício se estende à sociedade e tem tido, nos últimos anos,
efeitos eleitorais. A Coepa estima uma população de cães e gatos em
Fortaleza que chega a quase meio milhão, dos quais mais de 130 mil estão
em situação de abandono.
"O conceito de proteção aos animais domésticos não pode ser reduzido
ao controle da população. Só porque você faz um programa de castração
não quer dizer que está protegendo os animais. Há prefeituras criando um
controle populacional, mas há pilares a se investir, como educação
ambiental nas escolas, campanhas contra o abandono e efetivação de
punições", ressalta o ex-secretário de Proteção Animal na cidade do Rio
de Janeiro, Vinícius Cordeiro. Apesar de ter sido uma das pioneiras, no
início dos anos 2000, a Pasta perdeu o status de secretaria e, hoje,
enfrenta crises na gestão do prefeito Marcelo Crivella (PRB).
Mudança política
Em 2018, já coordenadora de proteção animal, Toinha Rocha diz ter
encontrado nova abertura dos vereadores de Fortaleza quando foi à Câmara
pedir apoio à destinação de verbas para proteção animal. "Temos uma
Câmara, hoje, em que 70% dos parlamentares passaram a se preocupar com a
causa. Ou porque se conscientizaram de que é um tema importante para a
cidade, é questão de saúde, de ética; ou porque começaram a perceber que
podem perder voto. O eleitor está mudando, defende bandeiras", destaca.
Para Cleyton Monte, o crescimento de pautas como a dos pets está
relacionado também à busca de novas formas de representação. "De 2013 a
2019, o Brasil tem enfrentado uma crise política profunda. Isso fez com
que as pessoas criassem um sentimento de descrença com representações
tradicionais. Uma pauta como a dos animais aproxima grupos que não têm
uma necessidade urgente de um suporte do Estado, como um posto de saúde,
por terem uma condição econômica melhor. Ainda assim, buscam um vínculo
que as aproxime do candidato. Elas não precisam de um posto, mas têm um
pet em casa. Daí vem a ligação com outras pautas que crescem, como a
preservação ambiental e a sustentabilidade", ressalta.
O prefeito de Fortaleza, Roberto Cláudio, reconhece que as ações do
poder público surgiram a partir do crescimento do tema. "Isso nem foi
pauta da minha campanha passada, não foi um compromisso meu, mas foi
algo que surgiu como uma demanda popular importante", ressalta. Há,
inclusive, articulação em andamento entre o Executivo Municipal e o
deputado Célio Studart para transformar a clínica veterinária em
hospital a partir do envio da verba de emenda parlamentar.
Gargalos
Para ativistas da proteção animal, a principal carência hoje é o
endurecimento e aplicação de penalidades contra os maus-tratos. "Há um
choque claro de políticos envolvidos com o Governo Bolsonaro e a
proteção dos animais. Defender castração de gatinho é fácil, quero ver
defender o fim das vaquejadas, dos rodeios", ressalta Vinícius Cordeiro.
A defesa destas outras práticas, é, em outra ponta, bandeira política
de outros parlamentares, especialmente em regiões como o Nordeste.
"O Brasil está engatinhando, ainda não tem uma legislação forte
acerca dos animais domésticos e silvestres", avalia Célio Studart. Foi
percebendo a brecha que ele fez disso uma bandeira de campanha, que
certamente será utilizada por outros nomes em 2020. "Não era minha única
pauta, mas era de fácil identificação com o eleitorado, abrange muita
gente que tem animal em casa", justifica.