As audiências de custódia completaram dois anos de implantação no
Ceará, em agosto último. O projeto foi iniciado com o intuito de
humanizar o Sistema Carcerário e desafogar as penitenciárias. De agosto
de 2015 até o último dia 19 de setembro, houve 12.559 atendimentos,
destes 4.462 resultaram em solturas mediante aplicação de medidas
cautelares, 551 em solturas sem aplicação das medidas e 53 em
relaxamentos de prisão. Somente de janeiro de 2017 até a metade deste
mês, 1.716 liberdades foram concedidas.
O instrumento processual prevê que o preso em flagrante seja
apresentado à autoridade judicial em um prazo de 24 horas, para que seja
decidido sobre a legalidade da prisão. No entanto, conforme o Tribunal
de Justiça do Ceará (TJCE), atualmente, o prazo para que os presos em
flagrante sejam apresentados ao juiz é de cinco dias. Isso, porque, no
Estado, não há servidores suficientes para cumprir o prazo estabelecido
pela Lei. No Ceará, a cada dia útil acontecem, em média, 40 audiências
de custódia.
Parte das autoridades da área da Segurança Pública veem as audiências
como oportunidade para que os presos voltem rapidamente às ruas e,
muitas vezes, reincidam na criminalidade. O juiz representante da Vara
Única de Audiência de Custódia, Pedro de Araújo Bezerra, concorda em
parte com essa vertente do tema, que associa a soltura do preso ao
retorno da ilegalidade.
O magistrado afirmou que a liberdade do detento vai depender da
gravidade do delito cometido e da ficha criminal dele. Apesar de o
Tribunal não contabilizar quantos presos que foram soltos em audiências
voltaram a cometer crimes, o juiz fala que as reincidências são comuns.
"Tive casos em que as pessoas foram beneficiadas com a soltura em
audiências de custódia e, em um ou dois meses, retornam a delinquir.
Temos um caso recente de um suspeito que foi preso em flagrante por
roubo e, em nove dias, retornou pelo mesmo crime. Da segunda vez,
decretamos a preventiva", lembra o representante da Vara única de
Audiência de Custódia.
Na opinião de Pedro Bezerra, atualmente, o crime envolve uma "cultura
de glamour". Com o fortalecimento das facções no Ceará, os jovens
passaram a se iludir com a falsa sensação de poder que o crime
possibilita. O professor doutor da Faculdade de Direito da Universidade
Federal do Ceará (UFC), Gustavo César Machado Cabral, reitera o
pensamento e lembra que entre os criminosos ainda há o discurso acerca
da facilidade em deixar o cárcere.
"Quem burla a lei, não imagina que será preso. E quando imagina, lembra
da facilidade que é ser solto. Aquele que vai delinquir sabe que é
pouco provável passar muito tempo preso. É muito da questão de como os
presídios estão estruturados internamente. O número de encarceramento
cresce e a sensação de insegurança acompanha esse crescimento.
Encarcerar não soluciona o problema", disse o professor de Direito
Penal.
Privação de liberdade
O defensor público titular da Vara de Audiência de Custódia e
responsável pelo Núcleo de Assistência ao Preso Provisório e Vítima de
Violência (Nuapp), Delano Benevides, afirma que, atualmente, o Brasil
vive uma política de superencarceramento. Enquanto nos anos 1990 havia
100 mil presos, hoje, os presos ultrapassaram 700 mil.
"As pessoas querem que se prenda mais. Isso demonstra inoperância de um
sistema, no qual a violência só aumenta. Grande parte da população
carcerária é formada por um público socialmente vulnerável. As
audiências têm intuito de frear esse superencarceramento. Mais de 4 mil
foram soltos de 2015 para cá, e nem assim o número de presos provisórios
diminuiu", lembrou o defensor público.
Neste ano, o Estado do Ceará atingiu o recorde no número de internos em
penitenciárias e cadeias públicas. Um último levantamento da Secretaria
da Justiça e Cidadania (Sejus), divulgado no início deste mês, traz que
há 26.395 detentos nos regimes fechado, aberto, semiaberto e na
condição de presos provisórios.
Para os estudiosos, o projeto audiência de custódia é uma medida
paliativa. Ou seja, não combate a 'raiz' do problema. "O Direito Penal
sempre chega atrasado. Chega quando o crime já foi praticado. A
criminalidade pode ser solucionada com prevenção. Hoje, está se
prendendo muito, mas está se prendendo mal. Não me pergunto se eles vão
reincidir, me pergunto o porquê eles voltam ao crime", avaliou o
defensor público Delano Benevides.
Conforme o TJCE, dentre os crimes mais vistos nas audiências de
custódia estão roubo, furto e tráfico. O defensor público garante que
80% dos que chegam ao Tribunal cometeram furto ou tráfico de drogas. O
juiz Pedro de Araújo Bezerra confirma que os narcóticos contribuem de
forma significativa para o aumento da criminalidade, principalmente,
quando o público é composto por homens jovens.
Opinião do Especialista
Impunidade dá a entender que o crime compensa
Luiz Fábio Paiva
Sociólogo e pesquisador da UFC
Vivemos no Ceará o drama dos homicídios. A Polícia se mobiliza,
apreende drogas, armas e realiza prisões. Qual o resultado disso para
diminuição dos homicídios no Ceará? Nenhum. Só existe um impacto social
na prática de crimes quando eu efetivamente consigo responsabilizar seus
autores. A prisão não pode ser um fim em si mesmo. Temos que pensar
modelos de responsabilização que funcionem na prática. Para isso
precisamos falar de reforma no sistema de justiça criminal e mais
especificamente em mudanças substantivas no trabalho de juízes e
desembargadores. O que importa é a certeza de que, ao cometer um crime, o
sujeito será devidamente responsabilizado, em conformidade com a lei
vigente. O código penal brasileiro precisa de atualizações e enfrentar
questões.