No Alto das Maravilhas, no meio de uma região de mata
fechada encravada no município de Santa Luzia, região metropolitana de
Belo Horizonte, há um presídio que só recebe condenados que cumprem pena
em regime fechado.
A penitenciária abriga hoje 175 homicidas,
assaltantes, estupradores e traficantes, a maioria com mais de
dezoito anos de cadeia. Não há policiais, carcereiros ou seguranças
armados. Quem vigia todas as portas da penitenciária, das galerias e das
celas são os próprios detentos. Não há guaritas de vigilância. O
presídio é administrado pela Associação de Proteção e Assistência aos
Condenados (Apac), uma organização não governamental que cuida de outras
47 unidades semelhantes em quatro estados.
A penitenciária foi
construída em 2006 em parceria entre os governos municipal, estadual e
federal. Hoje, abriga um dos detentos mais famosos do país. Bruno
Fernandes, ex-goleiro do Flamengo condenado a 22 anos e 3 meses de
reclusão pelo assassinato da modelo Eliza Samudio, carrega as chaves da
própria cela e trabalha vigiando os demais detentos. Antes de chegar lá,
Bruno passou por presídios convencionais, como o Nelson Hungria, o
maior de Minas Gerais, e o Complexo de Bangu, o maior do Rio de Janeiro.
A VEJA, o ex-goleiro diz que as penitenciárias tradicionais, em vez de
recuperar os presos, acabam por torná-los ainda mais perigosos. “O
sistema convencional não recupera ninguém”, afirma (leia aqui a entrevista).
Todos os presos, inclusive os 113 do regime fechado, passam o
dia fora das celas, nas oficinas e no pátio, onde têm livre acesso a
serras elétricas, pés-de-cabra e tesouras para os trabalhos artesanais.
No semiaberto, há enxadas, picaretas e foices. Os 62 detentos do
semiaberto se dividem entre oficinas, hortas e trabalho em empresas na
cidade. A associação recebe ajuda do Tribunal de Justiça de Minas para
capacitação de funcionários e gestores. Os presos fazem cursos como
marcenaria, padaria, jardinagem, informática e pintura. A administração
está concluindo uma fábrica de itens de segurança, como luvas e botas.
Todos estudam: noventa condenados fizeram o Exame Nacional Ensino Médio
(Enem) neste ano. Há biblioteca, ‘DVDteca’, computadores e internet para
curso superior a distância. Os presos usam crachá, são chamados pelo
nome, têm livre acesso aos diretores do presídio e são instruídos a
reclamar de tudo o que desaprovam.
A segurança interna é feita pelos próprios detentos. O
ex-goleiro Bruno é um dos mais novos seguranças do presídio. O jogador
carrega todas as chaves das celas de um bloco com duas galerias, onde
ficam cinquenta presos do regime fechado. Desde que chegou à unidade, há
um ano e quatro meses, o goleiro fez seis cursos, incluindo os de
soldador, jardineiro e pedreiro. Nesse período, ele ganhou a confiança
dos colegas e da administração. “A Apac é uma obra de Deus: devolveu a
minha dignidade, restituiu a minha família”, diz Bruno. O vizinho de
cela do goleiro, Carlos Maick, condenado a 22 anos de reclusão por
homicídio e roubo, concorda: “Eu só sabia pegar em revólver. Já cheguei a
ficar numa cela com 25 presos e muitos tinham de dormir no banheiro.
Agora, sou soldador, fiz o Enem e vou fazer faculdade. Se o Brasil
adotar esse sistema, consegue desmantelar a indústria do crime”. Igor
Lelis do Amaral, condenado a 23 anos de prisão por latrocínio, diz que o
sistema penal convencional, por onde já passou, deseduca. “Aqui estou
preso à minha própria consciência, a confiança é construída”, diz Igor.
O presídio conta ainda com os serviços de quarenta
voluntários. Além de não ganharem dinheiro para isso, alguns gastam do
próprio bolso para trabalhar lá. É o caso de Hilton Ferreira Pena,
vice-presidente da Apac, que ganha 1 600 reais mensais de aposentadoria.
Ele é tratado por muitos presos como pai. Antes da construção da
unidade, Hilton ajudou a fazer um abaixo-assinado para impedir que a
penitenciária ficasse ali, próximo de sua casa. Depois, mudou de ideia
em relação ao projeto. “Se algum recuperando está triste, vou lá e
converso com ele. Meus filhos brigam comigo, porque fico aqui de domingo
a domingo”, diz. Os candidatos a voluntário têm de fazer um curso que
dura até quatro meses.
A Apac de Santa Luzia já registrou um incidente. Em 2012,
seis presos fugiram do presídio, mas foram logo recapturados. Hilton diz
que foi o único problema que a administração enfrentou. “Eles tinham
acabado de chegar e não conheciam a metodologia”, diz. Hilton garante
que nunca foram registradas tentativas de rebeliões ou motins e nunca
houve morte no local. Além da delegação de poderes para os presos
administrarem parcela do presídio, a associação tem vinte funcionários
administrativos – alguns deles são ex-presidiários. A folha salarial é
de 70 000 reais mensais. Juntando todos os custos, cada preso custa 913
reais por mês ao estado. O encarregado da segurança do presídio,
Humberto Andrade Castro, defende a ideia de que o modelo de gestão seja
transformado em política pública. “A filosofia é a recuperação, a
família organizada como suporte, a construção da vida do recuperando.
Fazemos melhor, com um terço do que se gasta em outros presídios
convencionais.” Ele diz que o índice de reincidência criminal na unidade
de Santa Luzia é de 23%, menos da metade da média geral de Minas
Gerais, calculada em 51% por uma pesquisa da socióloga Roberta Fernandes
Santos, do Centro de Pesquisa em Segurança da PUC/MG, feita em 2015.
O modelo das Apacs já se reproduz por oito estados e inspira
autoridades de outros países que vêm ao Brasil para conhecer o projeto.
A última visita foi de autoridades do Chile, no fim do ano passado.
Humberto foi funcionário de penitenciária comum. “Lá, no presídio
convencional, no primeiro dia de trabalho me deram um pedaço de pau:
‘Isso aqui é um porrete e aquilo lá é um preso’, me disseram. No
presídio convencional, eu cuidava de números. Aqui, cuido de pessoas”,
diz Humberto. Ele conta que a Apac já recebeu pessoas ligadas a facções
criminosas. Nesses casos, há um acompanhamento especial do preso. Por
uma razão: assim que um membro de uma facção assume o compromisso de não
mais atender ao crime, ele passa a correr risco de vida se retornar ao
sistema tradicional. Para ingressar no presídio, o candidato assina um
“termo de responsabilidade” e envia uma carta ao juiz de execuções
penais, pedindo a transferência e se comprometendo com a filosofia da
instituição. O preso passa por avaliação sobre sua situação familiar,
mental, jurídica e social. Eles não podem chamar os colegas por apelido
nem usar drogas ou telefone celular. A entidade prega a valorização do
ser humano da família e da espiritualidade. Há local para orações, para
qualquer religião. No local há campos de futebol, quadras esportivas e
até uma academia de ginástica.
Os presos são obrigados constantemente a fazer exame de
toxicologia. Os detentos podem fazer três ligações telefônicas semanais
monitoradas para a família, de cinco minutos cada uma. A comida feita
pelos presos é também servida aos funcionários administrativos, à
direção do presídio e aos juízes, procuradores e demais autoridades que
visitam o local. Os presos usam talheres de inox e copos de vidro. As
celas têm 40 metros quadrados, cinco camas com colchões, ficam abertas
das 6 às 22 horas. Cada cela é dividida, no máximo, por cinco presos. E
há revezamentos entre eles, para evitar formação de grupos. Há chuveiros
quentes e vasos sanitários. As camas são de cimento e têm colchão,
travesseiro e lençóis. Não há uniformes – os presos só são obrigados a
usar crachás de identificação. As câmeras de vigilância ficam somente na
área externa do presídio. À noite, os presos se juntam para
ver televisão. As visitas íntimas ocorrem duas vezes por mês e podem
durar uma noite inteira, desde que seja para o fortalecimento da
família. Os visitantes passam pelo detector de metais e não são
constrangidos com o toque íntimo. O advogado e teólogo Valdeci Antônio
Ferreira preside a Fraternidade Brasileira de Assistência aos
Condenados, que congrega as Apacs. Ele não vê saída para o sistema
penitenciário nacional sem que a sociedade civil participe. “Sem o
envolvimento da comunidade, você não tem nenhum resultado na
recuperação. Essa metodologia não nasce por decreto, por desejo de
alguma autoridade, é resultado da participação da comunidade.” Valdeci
credita o sucesso do voluntariado nos presídios ao idealizador da Apac, o
advogado Mario Ottoboni.